terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Foto

Já faz algum tempo, troquei a foto do blog e publiquei, dizendo que a foto era NOVA. Quando eu disse NOVA, queria dizer: Nova foto do blog. Eu não quis dizer RECENTE.
Para minha surpresa, muita gente começou a postar comentários elogiando a foto, dizendo que eu estava muito bem, que parecia que o tempo não havia passado para mim. Algumas amigas queriam até saber o nome do meu tratamento anti-idade.
Eu achei que estava claro para todo mundo que a foto não era recente. Fiquei constrangida com a generosidade do julgamento de meus amigos. A foto havia sido tirada há mais de 10 anos, quando eu ainda trabalhava na editora. A gente precisava de uma foto profissional para o site e a empresa contratou uma fotógrafa para fazer o trabalho.
Realmente, a foto ficou muito boa. Eu resolvi usá-la no blog porque ela possuía um detalhe muito especial para mim.
Preciso dizer isso. Não tenho mais aquele rosto, aquele cabelo, aquela pele. Envelheci sob todos os aspectos. Tenho mais manchas no rosto, como se fossem ferrugem. Tenho os olhos mais fundos e meu cabelo já está bem grisalho. Nunca poderia sonhar que as pessoas julgassem que minha aparência atual fosse a mesma desta foto.
O detalhe ao qual me prendi, não tem nada a ver com minha aparência. Na verdade, amo essa foto por alguma coisa que a gente pode ou não pode perder com o passar do tempo: o brilho nos olhos.
Não sei se foi intencionalmente, mas a fotógrafa deixou meus olhos com estrelas dentro deles. Esse detalhe me cativou. Essa é minha grande ambição: estrelas dentro dos olhos, mesmo que o tempo passe e que tudo mais fique enferrujado.
Pensei em retirar a foto do blog, mas decidi deixá-la por mais um tempo. Tratei a imagem com um tom envelhecido para que não pairem mais dúvidas. Para os benevolentes amigos que acham que este é meu rosto recente, eu aviso: não sou mais assim. Há um intervalo de mais de 10 anos entre o momento da foto e meu momento atual. Há muitos efeitos naturais do tempo sobre minha aparência. Há muitos e bons efeitos da experiência sobre minha forma de agir e ver o mundo. Mas a foto está aí porque há também um desejo enorme no meu coração: estrelas nos olhos.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Abóbora
 
Passei um tempão pensando
e acabei de decidir.
A palavra que eu mais gosto é: 
ABÓBORA 
Gosto de falar e ouvir.
Quando falo, encho a boca
e deixo explodir o ‘bó’. 
Quando brinco de cantar ópera,
fico cantando: 
‘ABÓBORA, ABÓBORA!’, 
e acho muito engraçado. 
Quando brigo de não escutar,
fico de ouvido tapado e falo: 
“ABÓBORABÓBORABÓBORABÓBORABÓBORABÓBORABÓBORA’ 
sem parar.
 
ABÓBORA também pode virar
coisas que a gente inventa.
Pode virar panela,
a cabeça de um boneco,
a carruagem da Cinderela. 

ABÓBORA é tão importante
que tem até cor com seu nome.
Tudo que é cor de abóbora
dá vontade de comer:
fruta madura no pé,
cenoura, quibebe, bobó,
e o doce com cravo e canela
na casa da minha avó. 

Até a hora do dia que eu acho que é mais bonita
é quando o sol vai descendo, lá longe, perto do mar.
Ele vai ficando ABÓBORA, abóbora...
Depois ele vai embora, embora...  
Mas de manhã, ele volta, subindo lá do outro lado.

Uma ABÓBORA bem grande, cheia de brilho dourado.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Formiga
Naquele dia, Formiga saiu do buraco sentindo que alguma coisa diferente ia acontecer. Você sabe. Deve ser difícil para uma formiga pensar coisa diferente das coisas que todo mundo pensa. As formigas fazem tudo juntinhas. São muito organizadas. Não ficam parando longe do grupo para fazer poesia ou inventar moda.
Formiga sentiu, mas não disse nada pra ninguém. Seguiu o grupo de um jeito bem obediente até o destino final. O objetivo do dia era chegar ao topo do bolo de aniversário que os espiões tinham visto da janela da sala de jantar. Entrar na casa foi fácil. Subir pelo pé da mesa até que foi moleza. Mas agora, estava todo mundo camuflado debaixo da borda do prato, estudando uma forma de subir e não escorregar naquele creme branco cheio de ondinhas que cobria todos os lados do bolo.
As formigas são muito teimosas e acabaram encontrando um jeito de subir as paredes do bolo, umas empurrando as outras, até chegar ao topo.
O topo era tudo o que elas tinham imaginado. Ele era lindo, cheio de pequenas rosas coloridas sobre o creme muito branco. Todas as formigas ficaram muito satisfeitas por terem conquistado o topo do bolo. Todas, menos uma. É claro que Formiga teve lá dentro de seu coração formiguento um certo sentimento de vitória e sucesso. O problema é que Formiga não gostou muito do topo. O creme da cobertura era muito escorregadio. Mal dava pra ficar em pé sem ter que se escorar em alguém. Às vezes, as patas também atolavam e algumas formigas deixavam de se mexer por um tempão. Aí, tinha que vir outro grupo e dar um empurrão pra que as formigas paralisadas começassem a andar outra vez.
As rosas coloridas também eram a maior enganação. Elas eram feitas de um material que tinha gosto de plástico. Só beleza. Açúcar, que é bom, neca.
Foi ali, no topo do bolo, que o sentimento voltou para a cabeça de Formiga. De repente, o sentimento virou pergunta: ‘Será que o topo do bolo é tudo?’ Formiga se assustou com a pergunta. Mal teve tempo de desassustar, lá veio outra pergunta: ‘O que será que tem embaixo desse creme escorregadio, cheio de flores bonitinhas e sem graça?’
Formiga tampou os olhos e os ouvidos pra ver se as perguntas paravam de formigar em sua cabeça. Até que elas pararam. Mas aí, a cabeça mandou uma idéia: ‘Que tal descobrir o que tem por baixo de tudo?’
Formiga mal pode acreditar que tinha começado a ter idéias também. Desde pequenininha, Formiga tinha aprendido que o importante era seguir o grupo e alcançar o objetivo de cada dia. Pensar, sentir, perguntar, ter ideia, tudo isso não era coisa de formiga. Não se podia fazer essas coisas longe do grupo.
Formiga não conseguia fazer aquilo parar. Quanto mais tentava fingir de que estava gostando do topo do bolo, mais se atolava e escorregava. Suas patinhas de trás se atolaram tanto que, de repente, Formiga sentiu solo firme por baixo do creme. Formiga deixou que as patas da frente também afundassem mais um pouco até sentir bastante firmeza. Depois disso, não conseguiu resistir mais. Afundou também a cabeça e foi cavando com força para se livrar do creme e chegar mais fundo na parte de baixo do bolo. Agora estava tudo escuro. O bolo tinha cheiro e cor de uma coisa que Formiga já conhecia bem até de nome. Era um bolo de chocolate daqueles bem escurinhos e gostosos. Formiga sentiu vontade de ir mais fundo. Vontade também não era coisa de formiga, mas aquela vontade não parava de voltar.
Estava tudo escuro do jeito que era na terra, só que lá dentro do bolo era mais apertado para se mexer. Formiga tinha que fazer muita força para cavar mais fundo. Ficava tudo mais difícil porque agora formiga não tinha ninguém do grupo para ajudar. Formiga viu que esse seria um trabalho muito solitário, mas decidiu insistir. Entendeu que se quisesse ir mais fundo ia precisar ir mais devagar. Pelo menos, sabia que durante a viagem não faltaria comida. O bolo estava delicioso.
Formiga começou a ficar cansada. Pensou em desistir, mas a cabeça ainda estava mandando uns pensamentos e vontades para fazer com que a aventura continuasse. De repente, Formiga começou a sentir um cheiro muito gostoso. O cheiro vinha lá de baixo e deu ânimo para que Formiga continuasse cavando sem parar, enfrentando o medo e a solidão.
As patinhas da frente começaram a tocar alguma coisa mais macia. Formiga se apressou um pouco mais e consegui chegar inteira a um lugar onde havia um doce maravilhoso. Era o recheio, feito com geleia de morangos, cheia de pedaços da fruta. Formiga estava agora em um lugar maravilhoso. A cabeça pensava e comemorava dizendo: ‘ Valeu a pena enfrentar o escuro do caminho! ‘ Formiga concordava com esse pensamento. Isso sim é que era lugar gostoso e rico para comer e se lambuzar.
Ainda estava pensando assim quando uma faca enorme cortou o bolo. Formiga viu a faca passar de um lado e depois do outro, no lugar onde estava. Depois, veio aquela sensação de que tudo estava se mexendo. Formiga ficou parada de medo. Seu susto foi ainda maior quando eu tirei a primeira garfada da fatia de bolo.
Quando encontrei Formiga, sua cabeça estava coberta pelas patinhas da frente. No início, achei que devia jogar aquela parte do bolo fora, mas depois fiquei olhando pra ver o que Formiga ia fazer. Ficamos ali parados, olhando um para o outro, até que Formiga, com a maior coragem do mundo, subiu pelo meu garfo e me encarou. Confesso que nunca tinha aprendido a falar ou nem mesmo entender Formiguês, mas olhei bem para Formiga e, no mesmo instante, fiquei sabendo de toda essa história. Formiga me contou como havia se desgarrado do grupo para tentar chegar mais fundo no bolo. Contou também da sua alegria em poder provar o recheio de geleia de morangos, que era a coisa mais doce e gostosa que já tinha experimentado em toda sua vida de formiga.
Depois de ouvir tudo com atenção, deixei que Formiga subisse pelo meu dedo e procurei até encontrar o grupo de formigas que já tinham descido do bolo e se encaminhavam para subir a parede da janela que dava para o jardim. Disse adeus a Formiga e deixei que descesse do meu dedo. O grupo nem percebeu quando Formiga entrou na fila de volta pra casa. Só eu e Formiga é que sabíamos de sua história.
Não sei o que Formiga fez depois que chegou em casa. Às vezes fico imaginando como foi que contou sua história para as outras formigas. Talvez, em vez de contar, Formiga tenha virado poeta ou começado a pintar quadros muito bonitos. Talvez tenha começado a fazer música. Quem sabe, às vezes, Formiga fique só olhando para cima e lembrando do gosto do recheio.

Só sei de uma coisa: Formiga ficou diferente depois que foi fundo no bolo. Acho que aprendeu a fazer outra coisa que eu não sei se as formigas fazem: Formiga aprendeu a sonhar. 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Juca

Eu sempre disse que queria o bem de todos os animais, inclusive dos cachorros, mas não gostaria de ficar muito perto deles. Não tive um cachorrinho quando eu era criança, a não ser um cachorro de pelúcia que minha mãe deu pra gente “cuidar”. Ele dormia no banheiro, dentro de um caixote e a gente o cobria com um pano velho. Não latia, não fazia nada de errado e nem de certo. A gente embarcou na fantasia por uns dias e depois se tocou de que aquilo não era o cachorro tão sonhado.
Quando meu filho era pequeno, eu também não quis ter um cachorro. Eu já não dava conta de cuidar de nós dois e não queria me sentir responsável por mais uma coisa viva, sem me sentir capaz de cuidar dela também.
Sendo assim, arrumei uma gata pra gente. Ela era independente e ficou muito linda quando cresceu. Os gatos não são tão carentes de atenção quanto os cachorros. Acho que eles exigem menos. Gosto disso, como todo bom egoísta que se preze.
Agora que estamos na roça, vivo rodeada de animais, mas não sou a pessoa responsável por cuidar deles. As galinhas, cavalos, vacas e o que mais tivermos no momento, na sua maioria não têm nem nome. Eu os vejo, admiro, fico cheia de alegria quando estão pastando no meu quintal, mas me eximo da responsabilidade por seu bem-estar com um grande alívio de consciência.
Perdemos várias aves do galinheiro para a onça, por mais de uma vez. Fiquei chateada, mas nada que me tirasse o sono. Pensei na dureza da vida, meditei sobre como é rude a existência dos seres, humanos ou não, vivendo nesse mundo nem sempre planejado pra gerar felicidade.
Para minha surpresa, no entanto, tive de me render aos apelos para que tivéssemos um cão vira latas que nos desse sinal se, por ventura, a onça voltasse a rondar o quintal. Foi assim que pegamos o Juca ainda filhote. Ele tinha outros irmãos e irmãs, mas só ele tinha ficado cego de um olho por causa da unhada de um gato. Ele era zarolho, mas também era o único malhado, do jeito que eu tinha imaginado.
Levamos o Juca pra casa e eu estava um pouco incerta de que seria uma boa dona pra ele. Sempre tive certo complexo de inferioridade por não ter sido a mãe que gostaria de ter sido pro meu filho, e pensava que o Juca ia descobrir meus defeitos como dona de cachorro também.
Eu comecei devagar, dando ordens, colocando limites, servindo a comida, arrumando a caminha e quando eu vi, já estava deitada no chão, abraçando o danadinho. O Juca tinha uma coisa nobre no seu olhar de um olho só. Ele era um cão carinhoso, mas discreto. Ele não disputava atenção com ninguém. Tinha atenção, ele curtia. Não tinha, ele se virava. Ele era filhote, mas parecia mais maduro do que muita gente já crescida.
Bem, foi caso de amor mesmo. Eu tive que me render àquela criatura de Deus, àquele cachorro bom e gentil que veio morar com a gente.
Só que ele ficou doente. Mesmo vacinado, ele começou a tremer as patas traseiras e foi, aos poucos, perdendo o movimento normal. Ele firmava os movimentos nas patas dianteiras e arrastava as outras com muito esforço. Ele ficou bem magro e sentia dores porque tinha o olhar triste e chorava quando estava dormindo.
Fizemos o que podíamos, mas nada parecia adiantar. Ele, por sua vez, não perdeu a nobreza nem por um minuto.
Quando chegava do trabalho, ele vinha correndo, todo desengonçado, pra me encontrar. Ele demonstrava tanto carinho por mim que ficava constrangida por não saber o que fazer para curá-lo. Eu o abraçava bem perto do meu peito e dizia o quanto o amava. Ele levantava a cabecinha para o céu e recebia meu carinho no pescoço, como se sua vida já valesse a pena só por ter aquele momento comigo.
Um dia, quando estávamos só nós dois em casa, chorei muito quando entendi que ele não ia estar vivo por muito tempo. Cheguei bem perto dele e disse: Juca, eu amo muito você e estou muito triste porque acho que você vai morrer. Eu quero pedir pra você procurar o meu pai quando você for pro Céu. Ele vai adorar ter um cachorrinho maravilhoso como você por lá. Se ele estivesse aqui, ia curtir você demais. Então, se você for pra lá, fica com ele também!
Juca morreu. Ele vinha se aguentando, tentando viver da melhor forma que podia, sem um dos olhos e sem o movimento das pernas traseiras. Ele era uma fonte de carinho! Eu me rendi à sua amizade e fico feliz porque tive a chance de viver momentos felizes e tristes com essa criatura especial.
Juca me deu mais motivo pra andar com humildade diante da vida. Não controlamos nada. Na verdade, escolhemos muito pouco. Estamos sempre vulneráveis e submissos às possibilidades de sofrimento e perda. Mas também há sempre a oportunidade de alegres surpresas de amor e ternura, vindas até mesmo de um cachorrinho vira latas, zarolho, manco e que olha pra gente com carinho, mostrando o quanto podemos ter valor quando nos dispomos a simplesmente amar alguém de verdade.




terça-feira, 15 de abril de 2014

Insônia

Acordei no meio da noite. Crise de angústia na menopausa é uma coisa que não desejo pra ninguém. De repente, tudo na vida da gente vai dar errado: as pessoas que amamos vão morrer, a gente vai ficar doente, a velhice chegará solitária e triste. Vêm também à cabeça as cenas que estão acontecendo em muitos lugares naquela mesma hora: pessoas com muita dor, deitadas em uma cama de hospital; idosos nos asilos, maltratados e famintos; crianças morrendo de medo dentro dos orfanatos; presidiários sem ter onde se deitar ou sendo estuprados na prisão. O pior quadro de qualquer história, com vários personagens, isso é o que povoa a mente durante estas horas de puro descontrole hormonal.
Falo pra mim mesma: isso é um evento bioquímico. Amanhã de manhã, não vou pensar ou sentir estas coisas. Não adianta. Os temores noturnos continuam com uma torturante crueldade.
Minha mão, acidentalmente, toca a mão ao meu lado. Ele dorme o sono inocente do homem selvagem.  Capinou, cuidou dos bichos, ajudou a construir uma casa, cozinhou, comeu, e agora dorme pesado, sem nenhum questionamento existencial. Como invejo esse sono!
Ele acorda e me faz carinho. Percebe que estou soluçando de tanto chorar. Põe a mão sobre o meu braço e me pergunta o que houve. Ele sabe que a angústia me atacou outra vez. Tenta conversar um pouco, mas é vencido pelo sono. Mesmo assim, deixa generosamente a mão sobre a minha mão.
Como se fosse mágica, os sentimentos estranhos e aterrorizantes vão esmaecendo no meio da madrugada. O galo canta, mas ainda está tudo escuro lá fora.
Volto a dormir. Chego até a sonhar. Já é hora de acordar e voltar à vida. As olheiras denunciam a noite mal dormida. Se alguém tentar me comprar, vou ter que voltar dinheiro porque não estou valendo nada.

Há apenas o consolo de que, durante o dia, a vida acontece de forma um pouco mais disfarçada. O mal fica despercebido.  Na rotina, quase ninguém se lembra de que vai morrer. Pois vai.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

De Araçá e Graça

O araçá madurou no pé. Foi lá no galinheiro que o pé de araçá nasceu sem ninguém plantar. Nunca tinha provado essa frutinha pequena e cheia de sabor. Adorei. Pegar o araçá de presente, assim, só porque ele nasceu ali, me lembra da Graça de Deus. Não fiz nada pra ganhar aquilo e ganhei.
Fiquei animada e fui passear no pomar. Tirei laranja do pé e comi. Tirei tangerina do pé e comi. Tirei carambola e comi. Até a frutinha de café, vermelhinha e doce, comi também.
Voltei pra dentro de casa com a sensação de que o dia tinha valido a pena.
Quando a gente planta o pé de fruta, o coração fica cheio de sonhos. A gente fica imaginando quanto tempo vai levar pra fruta aparecer no pé. A fruta colhida no pé tem gosto de sonho realizado.
Há momentos em que me sinto a pessoa mais rica do mundo. Ando uns passos pra fora de casa, estendo a mão e a árvore me dá seu fruto bom, o gosto doce da vida que eu escolhi viver.

Dá vontade de ajoelhar ali mesmo e agradecer. Acho que Deus percebe e sabe - dentro de mim, estou de joelhos.

sábado, 12 de abril de 2014

A Casa do Luto

Eclesiastes. Este livro da Bíblia preenche um lugar de verdade para quem experimenta momentos de deserto. O sábio vê tudo e chega sempre à conclusão de que tudo é vaidade. Observando a “casa do luto”, o sábio diz que ali há mais sabedoria do que na casa em que há festa porque, neste lugar, todos ponderam sobre a vida.
Quando minha prima passou oito anos de cama, conheci, pela primeira vez, a sabedoria que há na “casa do luto”. Seu pequeno quarto no apartamento em Niterói era o local onde sempre me sentava ao seu lado, tomando café e conversando sobre as coisas da vida. Às vezes, chorávamos juntas por qualquer coisa. Falávamos sobre as histórias da família, comentávamos sobre coisas que tínhamos visto e assistíamos TV. Gostávamos de ver aqueles programas sobre pessoas pobres que ganhavam passagem pra voltar pra casa e rever a família. Fazíamos isso de propósito, porque gostávamos de competir pra ver quem ia aguentar mais tempo sem chorar. Na maioria das vezes, aquele quarto era palco de muitas risadas ou conversas sérias sobre a razão do sofrimento, os graves abalos da fé e o consolo de Deus.
Minha prima se recuperou e hoje vivemos em cidades distantes. Tenho hoje uma amiga que está de cama por causa de um joelho quebrado. Frequentemente, vou à sua casa e fico no quarto conversando com ela. Foi em uma dessas visitas que me surpreendi com a semelhança entre as situações. O quarto cheio de enfeites, colares pendurados, coisinhas em miniatura, detalhes coloridos como os do quarto de minha prima. Parecia que o cenário tinha sido montado de mesma forma, pela mesma pessoa. De repente, me vi sentada ao lado da cama filosofando, rindo e chorando outra vez.
Conversamos sobre a questão do sofrimento e como ele parece ser aleatório. Alguém questionou o motivo pelo qual uma pessoa que não está fazendo mal a ninguém passa por momentos tão dolorosos, enquanto outros que existem absolutamente para ferrar a vida alheia, às vezes morrem de velhos, em suas casas luxuosas, rodeados pelo fruto confortável do que roubaram do pobre. Sempre parece muito injusto que o sofrimento venha para quem é ético, bom, de boa conduta. Eclesiastes volta à cena.
Ficamos imaginando que se as contas fechassem, isto é, se quem faz errado recebesse a paga instantaneamente e se quem faz certo ficasse imune ao sofrimento, nosso livre arbítrio poderia sofrer uma quebra fatal. Ninguém mais escolheria fazer as coisas por querer mesmo fazê-las e sim porque haveria a recompensa ou o castigo para reforçar o comportamento. Seríamos como cobaias na gaiola acionando o botão correto para receber alimento.
De repente, fiquei imaginando que estamos todos sentados à mesa de carteado. Alguém embaralhou e está distribuindo as cartas aleatoriamente. Recebemos aquela mão de cartas. Não tivemos nenhuma escolha. Algumas vezes, as cartas são excelentes e já começamos o jogo acreditando que vamos bater bem rápido. Outras vezes, recebemos cartas que nos desanimam e nos fazem achar impossível ganhar o jogo. Mas o jogo não acaba quando recebemos as cartas. Ele só está começando. O que fazemos com as cartas, o que compramos da mesa, as associações que somos capazes de formar, isso tudo é que vai nos fazer prosseguir e até ganhar o jogo, mesmo com cartas não muito favoráveis, ou vai nos fazer perder o jogo, mesmo com as grandes possibilidades que tínhamos no início.

Minha prima e minha amiga de joelho quebrado receberam cartas bem ruins. Estive com elas neste lugar onde há sofrimento, ou seja, na “casa do luto”. Sentada ao lado de suas camas, em momentos diferentes de minha vida, joguei com elas o baralho das ideias e sentimentos sobre a existência humana e vi que elas estavam fazendo um jogo muito bom, com grande possibilidade de bater com canastra real. 

quinta-feira, 20 de março de 2014

A Perua do Gávea

Todos os dias, no ônibus Gávea-tarifa, o mesmo clima frio de ar refrigerado, perfume e condicionador de cabelo enchendo o ar de cheiro de festa. A rádio tocando algum flashback dos anos 80 na JB. Tudo costumeiramente previsível, até que ela entrasse no ônibus.
O corpo magrinho em roupas provocantes de adolescente, contrastando com o rosto que denunciava que a juventude já havia ficado pra trás. O cabelo comprido, louro cenoura na pele morena, dava um ar meio vulgar à figura que, ao abrir a boca, confirmava toda a desconfiança.
Chegava falando alto com o motorista, a quem chamava sempre pelo primeiro nome. Cheia de intimidade, reclamava do horário do ônibus, enquanto se ajeitava toda faceira em uma das poltronas da frente. Aí, viajava o tempo todo conversando com o pobre moço, um profissional bem treinado que apenas confirmava qualquer bobagem com a cabeça, enquanto passava as marchas.
Sua voz era irritantemente rouca e estridente. Talvez fosse esse o principal motivo da má vontade dos outros passageiros em relação à sua presença no ônibus nosso de todo dia.
Sorte de todos! Por algum tempo, ela parou de viajar naquele horário. Agora, na poltrona da frente, apenas uma senhora muito elegante, séria e com o olhar distante ocupava silenciosamente o espaço.
Até que um dia, depois de longa trégua, o cabelo cenoura apontou na escada. A rotineira brincadeirinha com o motorista e enfim, juntas nas poltronas da frente, ficaram a dama elegante e a perua do Gávea. O visível contraste criava no ar uma expectativa comum: sobre o que vão conversar? Vão conversar?
Ela, como era de se esperar, puxa um assunto qualquer e a mulher embarca devagar, até que, aos poucos, a conversa toma um destino inesperado. Não se sabe por que razão, a dama elegante e triste começa a contar sua história. Havia perdido a filha em condições trágicas e provavelmente violentas. Sua voz é grave, doída e trêmula como a lateral de seus lábios, tentando conter o vulcão de emoções, de rancor, de intenso sofrimento.
Mas logo pra quem ela vai contar uma coisa dessas!? A tensão paira no ar como se todos em suas poltronas estivessem prontos a ceder seus lugares para que a mulher pudesse ficar longe de qualquer comentário infeliz ou estridente por parte da perua.
A mulher continua falando de sua dor em tom de impotência. A perua ouve tudo atentamente e, às vezes, dá pra gente ouvir sua voz rouca, agora em tom bem suave, mencionando coisas como vida depois da morte, lugares bonitos onde as pessoas descansam em paz em algum ponto do universo, talvez o Céu.
O ônibus passa pela ponte, a rodoviária Novo Rio, o túnel Santa Bárbara até chegar a Laranjeiras, onde a mulher se despede, talvez um pouco mais leve e menos sofrida, descendo no ponto do Palácio do Governo.
A perua, com a mesma voz suave, aperta suas mãos de forma calorosa e depois acena pela janela até que o ônibus começa a deixar Laranjeiras pra trás.
O barulho dos carros e o apito do guarda contrastam com o silêncio causado pela perplexidade dos passageiros.
Um minuto de quietude e ela se recosta na poltrona. Olha outra vez para fora com os olhos mirando lá longe. Sobe a mão até o rosto e enxuga algumas lágrimas. Chora com generosa solidariedade a dor daquela desconhecida.
O ônibus continua a viagem, como fazem tantos outros coletivos urbanos, todos os dias, indo e vindo pra levar as pessoas que trabalham, estudam, sobrevivem rindo ou chorando. Ônibus que estão lotados de seres humanos maravilhosamente surpreendentes!


segunda-feira, 17 de março de 2014

De repente, o vento.
Rasgos azuis entre as nuvens.
Folhas brilhando.

De repente, o vento.
Movimento e silêncio.
Folhas dançando.

De repente, o vento.
Felicidade e mistério.
Deus passeando.

quinta-feira, 13 de março de 2014

A Menina e os Anjos 

A menina entrou na capela um pouco assustada. As imagens dos santos com cabelo de verdade lhe davam muito medo.  Durante as férias, sempre visitava as cidades históricas de Minas Gerais com sua família por causa da insistência de sua mãe em mostrar suas raízes, como boa mineira bairrista. Assim, conversavam durante a viagem sobre a beleza dos montes, a delícia das comidas e as histórias tristes dos inconfidentes.
Em volta da porta da capela, as únicas imagens que não a apavoravam eram as estátuas de anjos pelados e gordinhos, voando e tocando algum instrumento. Seus rostos também refletiam algum tipo de assombro e ela pensava: os anjos também não gostavam daquelas imagens cabeludas de gente esquálida e sofrida.
Mais tarde, a menina descobriu que os rostos daqueles anjinhos, ainda tão meninos, denunciavam o medo e o horror de um povo massacrado em uma nação, ainda também menina, que precisava se libertar do braço forte de Portugal.
Por toda a vida, os anjos sempre lhe causaram espanto e admiração. No Natal, havia  peças teatrais montadas na igreja e os papéis de anjo eram dados às moças louras, altas, de olhos verdes, que ficavam ainda mais lindas em suas túnicas de cetim branco. Todas usavam um arco brilhante sobre a cabeça que lhes emprestava o tom da divindade.
Sua única experiência como anjo de Natal foi em um presépio vivo. Tinha que ficar de pé, com as mãos postas em oração, ao lado da manjedoura. Estava com muita vontade de fazer xixi e, graças à túnica branca e muito comprida, quando não pode mais segurar, juntou bem as pernas e deixou que aquele líquido quente e confortante escorresse devagar, até formar uma poça em volta de seus pés.  
Atriz compenetrada, usou sua expressão de alívio e prazer para representar um ar angelical de admiração, enquanto olhava ternamente para o bebê na manjedoura. Todos cantaram ‘Noite Feliz’. As cortinas se fecharam. Tinha a certeza de que conseguiria se safar sem problemas, até que começou a andar e foi deixando um rastro de pés molhados no xixi, acompanhado do denunciante barulho: Ploft! Ploft! Anjinho mijão e envergonhado, ela tratou de sumir de cena, levando por muitos anos, essa doce história sobre sua participação no presépio.
A partir de algum momento da vida, passou a colecionar histórias de anjos. Alguns deles estavam nos relatos da Bíblia como proteção mandada por Deus em situações difíceis como a cova dos leões, a fornalha de fogo, a prisão.
Aprendeu a chamar pelos anjos cantando uma velha canção que sempre ouvia na igreja humilde, onde seu tio ministrava como pastor. Ela dizia: Senhor, põe um anjo aqui! Senhor, põe um anjo aqui!
Ao sentir-se em perigo, ameaçada pela dor, cantava para pedir por ela mesma ou por alguém que precisasse se libertar de algum tipo de tortura física ou emocional.
Era noite, e desta vez, não houve tempo para canções. O motorista dormiu ao volante e o carro se chocou contra a pedreira, destruindo completamente uma das rodas. A estrada estava deserta porque já era muito tarde. Ninguém estava muito ferido, mas o pânico não deixava que o motorista, a única pessoa capaz de trocar a roda do carro, fizesse alguma coisa.
De repente, um carro prateado e bonito parou no acostamento. Dois homens bem vestidos e elegantes saltaram, disseram a todos que ficassem calmos porque eles iam  deixar o carro em condições de seguir viagem. Fizeram tudo rapidamente e seguiram o carro acidentado até um ponto da estrada, perto da cidade, de onde desapareceram.
 Depois de muito tempo, soube que uma outra família com o carro quebrado em estrada deserta ouviu um som muito alto se aproximando. Todos tiveram muito medo quando quatro cabeludos tatuados pararam seu jipe perto do carro quebrado. Sem esperar que alguém pedisse, aqueles homens estranhos rebocaram o carro até o lugar onde ele poderia ser consertado. Quando a família ofereceu para pagar o combustível do jipe, um dos cabeludos tatuados respondeu: Não precisa. Meu pai é muito rico. E depois, o jipe desapareceu na estrada.
Histórias de socorro e proteção foram aumentando o repertório desta mulher que agora se via deitada em uma cama fria, encarando luzes fortes e brancas, dentro de uma sala de cirurgia e sentindo-se muito só. Enquanto aguardava pela equipe médica responsável por sua operação, fechou os olhos e deixou que a canção antiga voltasse à sua mente, pedindo: Senhor, põe um anjo aqui! Põe um anjo aqui! Só abriu novamente os olhos quando ouviu uma voz meiga perguntando: ‘O que você faz aqui, menina?’
A voz era de  Branca, uma amiga doce e carinhosa, que por coincidência, ou não, estava encarregada de instrumentar a cirurgia. O toque amoroso das mãos de Branca sobre seu braço fez com que toda a solidão e medo desaparecessem.
Anjos, anjos, muito anjos em volta das portas da vida. As imagens dos anjos se fundiram umas às outras, estranhas criaturas, companheiras em tempos de dor, rostos diversos, serenos, apavorados, bonitos, cabeludos em corpos tatuados, ou até mesmo o rosto de uma criança que sai de fininho depois de fazer xixi onde não devia. Para ela ficou sempre a impressão de que, na verdade, neste mundo cheio de perigos, nunca estamos inteiramente sós.