segunda-feira, 1 de outubro de 2018


Dia de Fazer Geleia

As jabuticabeiras deram muito fruto este ano e, se a gente não fizesse alguma coisa, ia acabar estragando tudo. Meu marido então, como se fosse fácil, decidiu: “É só fazer geleia”. Eu fui pra cozinha com uma bacia cheia das frutinhas pretas, mas estava meio contrariada, pensando no tempo, no gás e no açúcar que ia gastar pra produzir algo que ninguém aqui em casa deveria comer. Mesmo assim, pra aproveitar a dádiva generosa da natureza, me convenci a fazer a tradicional geleia de jabuticaba da família.
Sempre é assim. Fervo as frutinhas e deixo esfriar. Depois, mergulho as mãos na panela e começo a esmigalhá-las. Aí, eu penso nela. Ela fazia a melhor geleia de jabuticaba que já provei. Eu esmago as frutinhas e sinto os caroços, as cascas e o sumo de uma cor indescritível. Ao mesmo tempo, no meu coração, fico separando caroço, casca e essência dos sentimentos que tenho.
Ela se tornou mãe mais tarde, depois dos trinta. Fui sua primeira cria. Fico tentando, até hoje, perdoar as primeiras palavras que ela disse quando o médico lhe contou que o bebê era uma menina: “Ah, meu Deus! Vai sofrer tudo que eu sofri!” Isso não era frase pra receber uma criança que chegava ao mundo e essa profecia poderia ter sido um estrago na minha vida. De qualquer forma, desde que soube disso, lá dentro da minha alma rebelde, eu quis provar o contrário.
Nunca fomos mamãe e filhinha. Nunca. Ela não gostava de brincar de casinha comigo, mas elogiava meus desenhos. Ela não pulava amarelinha, mas me ensinou fazer tricô e tocar violão. Ela detestava cozinhar e cuidar da casa, mas me ensinou a fazer geleia de tudo e também um chutney de manga que nunca consegui fazer igual. Ela queria que eu fosse mais vaidosa, bem vestida e magra. Eu rabiscava as calças com corações e símbolos da paz, como era comum entre os hippies da época. Ela era a cidade e eu a roça. Ela amava Jesus e eu tinha medo dele. Eu amava a vida e ela tinha medo dela. Ela tinha medo de quase tudo. Eu comecei a ter medo também, mas a própria vida me forçou a deixar o medo de lado. A mesma vida me ajudou, mais tarde, a perder o medo de Jesus e acreditar na Graça.
Tudo que construí dentro de mim tem um pouco dela. Algumas pinceladas de poesia, arte, sensibilidade e generosidade que eu fiz questão de incorporar ao quadro que me define. Outros rabiscos mais tensos, eu mesma fiz questão de apagar, mas não sei se consegui. Há exemplos de atitudes dela que tento deixar comigo nas decisões de todo dia. Ela dava abrigo em nossa casa para quem precisasse. Nunca moramos sozinhos, ou seja, apenas mãe, pai e filhos. Na casa de três quartos e um quintal na parte de trás, sempre havia um idoso, um deficiente, uma família inteira que tinha perdido sua casa na enchente, outra família que precisava deixar de pagar aluguel pra poder construir sua casa, gente que vinha da roça pra tratar da saúde na cidade, gente que vinha da roça ter neném na cidade, gente que queria largar o vício das drogas e precisava de um lugar pra comer, ou que precisava ficar lá até ser encaminhado para uma clínica de reabilitação. Nossa casa era o abrigo de afeto dos amigos que não encontravam espaço para se expressar em suas próprias casas.  Ela recebia todo mundo com amor, conselhos e café com bolo.
Ela se foi e deixou a cor da geleia de jabuticaba na paisagem do quadro da minha vida. Até o gosto da geleia parece com o tipo de relacionamento que nós duas construímos. Há um doce-azedo com alguma coisa que pega na língua, que não é suave como geleia de morango, que parece mais um vinho português rascante, lá bem longe. Assim era nosso amor de mãe e filha. Uma amizade forte, conflituosa, mas verdadeira e muito profunda. Tão profunda que brota como a espuma da geleia quase pronta na panela, sobe pelo ar com um perfume gostoso, deixa a casa toda cheia da presença dela. Deixa esse momento cheio de uma saudade que dói.
Eu mexo a geleia no fogo e testo o ponto como ela me ensinou. Depois de pronta, com aquela cor linda e um sabor especial, a geleia vai para os potes e eu vou escrever. Tudo isso, só por causa da geleia de jabuticaba. A vida seria bem mais simples se fazer geleia fosse apenas um ato culinário, mas há momentos em que a memória, o sentimento e a poesia não nos deixam escolha.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018


All the Lonely People

Minha mente insiste em ouvir uma canção dos Beatles em dias como hoje. Fico cantarolando por dentro: All the lonely people, where do they all come from? All the lonely people, where do they all belong?
Morar em lugar pequeno dá pra gente uma possibilidade de enxergar as pessoas. Assim, também é mais fácil detectar aquelas que se destacam por saírem completamente do padrão. Pessoas que parecem ter pulado pra fora das páginas de um livro, passam por nós na rua, ficam debruçadas na janelas nos vendo passar, cavalgam pela estrada enquanto estamos indo ou vindo de carro de algum lugar.
Hoje, uma dessas pessoas se foi. Um homem rude, barbado até o peito, cabelos compridos e um corpo que não via banho com nenhuma frequência. Dono de muitas terras, mas sempre mal vestido, montado no seu cavalo como se fosse um guerreiro voltando de uma batalha perdida.
De longe, na primeira vez que o vi, parecia um Don Quixote mal acabado, um herói cavaleiro daqueles que a gente só vê nas estradas de terra do interior do Brasil. Depois, convivendo com seu ir e vir na estrada, dava pra gente perceber que estava diante de um enigma. Como aquele homem tão rico, cheio de terras e posses, andava assim tão largado, sujo, sem família, sem amigos, sem sorrisos.
Demos carona a ele em um dos raros dias em que estava sem seu cavalo e comentamos sobre a falta de chuva. A gente molha a planta, mas nem parece que molhou. Fica tudo seco, nada muda. Mas quando chove, mesmo que por pouco tempo, a paisagem toda muda. As plantas ficam mais verdes de repente. Ao nosso comentário, ele respondeu: isso é porque ninguém molha a planta como Deus. A gente tenta imitar, mas não é igual.
Fiquei surpresa com sua fala mansa naquele momento. Um jeito sereno de identificar na natureza o toque de Alguém maior que ele, maior que nós, muito maior que tudo.
Ele morreu tentando salvar uma vaca do atoleiro. Tirou suas roupas, entrou no brejo e, ninguém sabe como, ficou ali, preso com o animal, sendo os dois achados mortos, hoje de manhã.
Viveu e morreu na companhia de seus únicos parceiros – os animais. Vida solitária, silenciosa, parecendo triste para mim, mas talvez não para ele.
Na cidade, todo mundo ficou um pouco triste, pensativo, surpreso mesmo com sua morte. Pessoas assim parecem imortais como os personagens de livros. Ficam pra sempre nas histórias que o povo conta. Ficam pra sempre como parte da paisagem que já não está mais ali. De onde eles vêm? A que lugar eles pertencem? Assim como os Beatles na canção, eu fico pensando sobre todas essas pessoas solitárias.

terça-feira, 29 de maio de 2018


O Petróleo é Nosso!

Desde criança, me acostumei a ouvir a frase: o petróleo é nosso! Uma vez, na quinta série, cheguei até a fazer um cartaz para um trabalho de Geografia com esse título. Agora, vendo tudo que está acontecendo no país, comecei a ter um sentimento estranho, me achando ignorante demais para entender tais assuntos.
Não tenho formação em Economia e sou uma pessoa bem básica, mulher de meia idade, morando na roça, professora da rede pública e dona de casa. Será que sou a única pessoa que tem dificuldade para entender o que está acontecendo? Talvez, se eu questionar, alguém consiga me explicar.
Aqui na roça, plantamos tangerina. A terra é nossa. Compramos as mudas, formamos o pomar e nessa época, colhemos, trazemos pra casa, damos para os filhos, para os amigos, e se eventualmente as vendemos, nunca vamos ao supermercado comprar nossas tangerinas. As tangerinas são nossas. Dispomos delas no nosso quintal.
Com a greve dos caminhoneiros, percebi que o problema de todos nós é o preço alto que é pago pelo combustível. Só que a lógica que eu uso na minha roça de tangerinas não funciona com o combustível. As reservas de petróleo são nossas. Estão em território brasileiro. A empresa que explora estas reservas é nossa, a Petrobrás, uma empresa formada com o nosso dinheiro. A tecnologia de exploração também é nossa. Mas o preço mais alto que é pago pelo combustível também acaba sendo nosso. Por quê?
As pessoas explicam que os impostos são responsáveis por grande parte desse preço alto dos combustíveis. O imposto mais caro do mundo também é nosso. Aí, tem greve de caminhoneiros por causa dos altos preços dos combustíveis e o governo explica que vai baixar o preço do Diesel, mas que terá de pagar à Petrobrás por isso, tirando dinheiro do orçamento já minguado e comprometido, impossibilitando melhores serviços à população, aumentando impostos sobre a folha de pagamento das empresas, inviabilizando mais produção, mais emprego e mais bem estar social. Tudo isso, mas o petróleo é nosso. Não dá pra entender.
Gosto de assistir novelas. Na novela das 9 que terminou, havia um bordel , o Love Chic. Havia lá uma prostituta que transava com o segurança do bordel sem cobrar nada. Ela trabalhava a noite toda e depois ia pra cama de graça com o amante. Ela dizia para as outras: esse homem é meu! O cara pedia a ela que comprasse coisas pra ele e ela trabalhava ainda mais pra poder bancar os presentes que ele havia pedido. Um dia, ele pediu um terno bem caro. Ela se esforçou mais, trabalhou mais, foi lá e comprou o terno pra ele. Este foi o terno que ele usou para casar com uma filha de fazendeiro e deixar a pobre da prostituta no bordel a ver navios.
Às vezes, acho a situação desta moça bem parecida com a condição do povo brasileiro. Por sinal, bordéis estão em alta como temas das novelas. Talvez, isso aconteça porque a música do Cazuza fica tocando o tempo todo no nosso inconsciente coletivo:  “transformam o país inteiro num puteiro, porque assim se ganha mais dinheiro”. Gritamos para todo mundo que o petróleo é nosso, mas pagamos muito caro por ele, pagamos mais impostos por causa dele, trabalhamos muito pra bancar o que ele nos oferece, mas ele foge com os investidores estrangeiros, levando tudo que lhe demos com tanto sacrifício.
Talvez, eu não esteja entendendo bem o que está acontecendo. Talvez, minha maneira simplória de ver as coisas me deixe incapacitada para julgar as implicações da composição de preços dos combustíveis. Só sei que os resultados de tudo isso não me agradam. A vida nesse bordel está ficando a cada dia, mais sacrificada para todos nós.
Por isso, algumas perguntas não saem da minha mente: O petróleo é nosso? Nosso? De quem? O petróleo é uma riqueza do Brasil? Riqueza? De quem? Com meu jeito simples de observar as coisas, cheguei a uma conclusão nada racional: o petróleo é do diabo!

domingo, 17 de dezembro de 2017

Para Onde Iremos Nós?

Há dias em que a gente fica pensando na fragilidade da existência humana na Terra. A mulher exuberante, linda e alegre que trabalhou comigo por alguns anos, postou fotos de situações em que estava feliz, passando dias na praia e 15 dias depois havia morrido por causa de um AVC. A doce amiga que faltou à reunião anual das amigas de juventude porque estava febril, piorou e na outra semana, estava na UTI de um hospital por causa de uma infecção generalizada. Notícias assim mexem com alguma coisa muito séria, lá dentro de mim.
Deu caruncho no arroz e eu e meu marido fomos catar os bichinhos. Eles pareciam estar gostando do ambiente farto, espaçoso e tranquilo dos pequenos e brancos grãos de arroz até que, de repente, a gente os afogava, catava e jogava fora.
Fiquei observando o destino dos carunchos e de certa forma, me identifiquei com eles. Estamos felizes, distraídos, fartos. Em poucos segundos, nossa vida muda e a surpresa pode até mesmo ser a morte. Carunchos insignificantes, moscas perturbadoras, cachorros de rua e seres humanos têm o mesmo destino final.
Acho que é por isso que, enquanto fico mais velha, vou perdendo a paciência com os jovens. Lá dentro do meu coração, aparece uma indignação quando vejo o quanto de vida eles desperdiçam em bobagens, vivendo displicentemente seu dia a dia, da mesma maneira como as pessoas fazem com quase tudo que se desperdiça no mundo, desde a água até o tempo.
Fico impaciente também com os velhos porque sabem que a vida acaba, ou melhor, que já está quase acabando, e mesmo assim ficam perdendo um tempão preocupados com doenças, exames, o que faz mal e o que não faz mal.  
Tenho também muita preguiça em relação a assuntos que as mulheres conversam diante de comida: “Vai engordar”!; “Isso é diet”? ; “Só um pedacinho porque estou de dieta.” Ah! Como isso me cansa! A única imagem que me vem à mente é a de alguém impossibilitado de comer, cheio de tubos enfiados pela boca, sonhando talvez em ter um momento especial como o de poder comer um doce gostoso, daqueles que engordam bastante.
Perder a paciência é um defeito que vem com o envelhecimento. Perder é uma prática que vem com o ato de existir. Vamos perdendo jeito, coisas e pessoas importantes ao longo da vida. Ganhamos também outras tantas para perder depois. Ninguém escapa de perder e de, no momento final, tornar-se uma perda na vida de outros também.
Em dias assim, fico grata por ter encravados no coração alguns textos bíblicos que fazem parte do meu repertório de fé desde criança. Lembro-me de Jesus perguntando aos seus discípulos se eles queriam deixá-lo e da resposta que eles Lhe deram: “Para onde iremos nós, se só Tu tens as palavras de vida eterna”?

Para onde iria eu em um dia como hoje? Não sei. Meu coração se aquieta quando se aproxima desta certeza: só Tu tens palavras de vida eterna. 

sábado, 13 de maio de 2017

Panos Brancos ao Sol

Hoje, o sol de outono brilhou e deixou o céu sem nuvens. Dia perfeito para exercitar uma a mais das minhas loucuras. Em dias assim, se tenho tempo, tiro os panos de prato que estão um pouco amarelados da gaveta e lavo todos, deixando de molho e depois quarando ao sol. Faço o mesmo com os paninhos bordados e de crochê que herdei de minha mãe.
Meu varal fica lindo, com todos aqueles panos brancos dançando com o vento! Não sei ao certo a razão, mas para mim, este é um ritual de pura alegria e paz.
Talvez tenha herdado este sentimento por ser bisneta de lavadeira. Minha bisavó Mariquinha era uma açoriana que veio sozinha para o Brasil aos quinze anos. Nunca entendi tanta coragem, mesmo sabendo que ela estava fugindo de uma vida difícil, sem mãe e tendo que enfrentar o medo que todo açoriano experimenta quando tem o chão tremendo debaixo dos pés por causa dos vulcões.
Não posso dizer que sei o que é ter o chão tremendo debaixo dos pés, a menos que seja figurativamente, em uma ou duas situações durante toda a minha vida. Ela, por sua vez, deixou um solo instável por outro, viajando de navio para o Brasil, sem saber o que ia encontrar por aqui. Lavadeira e viúva ainda nova, ela criou muitos filhos com seu trabalho. Construiu casa, viveu com dignidade e seu nome foi dado à rua onde morou em Petrópolis: Rua Maria José Janiques. Não era nobre, política ou rica, mas a lavadeira virou nome de rua. Deve ter marcado de alguma forma o lugar onde viveu.
Minha bisavó foi a única avó que conheci. Ajudou a cuidar de mim quando era bebê e cantava cantigas portuguesas para eu dormir. Morreu velhinha, sem nunca ter se consolado da dor de viver mais do que Guiomar, sua filha e mãe de meu pai. Ela deixou uma herança impalpável. Deixou o perfume doce de sua presença e o exemplo de força e coragem.
Meus panos de prato são bandeiras ao vento, mostrando com orgulho, para mim mesma, que também sei lavar roupas, que sobrevivi ao terreno instável da vida, que também tive coragem de olhar o porto e me lançar em jornadas difíceis e arriscadas para lugares desconhecidos.
Os panos voltam para a gaveta, branquinhos. Quem me vê mais de perto jura que eu estou maluca por gostar tanto desse ritual. Eu mesma não tenho certeza sobre a minha sanidade mental. Mas sei que panos de prato no varal possuem um significado que vai além do que os outros podem ver. Eles talvez façam parte daquela verdade eterna, daquele sentido profundo que existe no subterrâneo da existência humana. Eles talvez sejam mesmo as minhas bandeiras celebrando uma vida que vai além do que posso explicar.



segunda-feira, 24 de abril de 2017

O Diabo Atrás da Porta

Por vezes sem conta, tenho vontade de escrever um livro contando histórias que ouvi de minha mãe e minhas tias. Elas, por sua vez, nos contavam histórias que ouviam de minha avó, Dona Maroca. Não cheguei a conhecer minha avó pessoalmente, mas o sentimento que tenho é de saber como ela era e de admirá-la muito. Sempre achei que ela ajudou a construir nas mulheres da família uma alma aberta, alegre, cheia de fé.
Uma dessas histórias tem me ajudado muito a entender algumas armadilhas da vida e ao contá-la, espero que ajude outras pessoas também. Esta é a história de um casal que morava na roça. O homem era agricultor e sua mulher era dona de casa. Os dois se amavam muito e sempre demonstravam isso. Quando o marido acordava, ele dizia: “Bom dia, meu amor!”. A esposa respondia com a mesma doçura: “Bom dia, meu coração!”.
Quando o homem saía para trabalhar na lavoura, ele beijava a mulher e dizia: ”Até logo, meu amor!”. Ela o acompanhava até à porta, abraçava-o e dizia: ”Até logo, meu coração!”
O mesmo acontecia quando ele chegava da roça e ela o recebia com o jantar quentinho. Os dois se abraçavam e diziam: “Boa noite, meu amor!” e “Boa noite, meu coração!”
Conta-se que o diabo já estava cansado daquele carinho todo e resolveu que ia fazer aquele casal brigar a todo custo. O diabo acordou mais cedo, foi pra casa da roça e preparou tudo. Ele ficou atrás da porta, com cara de deboche, vendo o casal se despedir naquela manhã, como todos os dias: “Até logo, meu amor!” e “Até, logo, meu coração!”
Quando o homem chegou ao paiol onde guardava suas ferramentas de trabalho, sentiu um cheiro horroroso.  Ele foi pegar as ferramentas e tomou um grande susto. Todas elas estavam cobertas de merda. Era difícil aguentar o cheiro, mas ele teve que passar o dia todo lavando aquilo tudo, sem poder trabalhar na roça.
Ao mesmo tempo, quando a mulher foi fazer a comida, sentiu um cheiro terrível dentro da cozinha. Ela foi pegar as panelas e também tomou um grande susto. Todas as panelas e utensílios estavam cobertos de merda. Ela até chorou muito, mas não adiantava ficar ali apenas chorando.  A mulher então passou o dia lavando aquela merda toda, fervendo tudo e nem teve tempo para fazer comida alguma.
O diabo ria muito atrás da porta. Ele estava certo de que, depois de um dia cheio de merda como aquele, o casal ia acabar brigando. Ele estava ali, escondido, apenas esperando o grande momento em que o marido voltaria para casa e seu plano estaria completo.
À noitinha, como todos os dias, o marido voltou da roça. Ele tinha o olhar muito cansado e estava frustrado por não ter podido ganhar o pão de cada dia por causa da merda que teve que limpar. A mulher o recebeu à porta, com o mesmo rosto cansado e muito triste porque sabia que não teria nada para servir no jantar. Ela tinha passado o dia todo limpando merda também.
O diabo ficou rindo atrás da porta, com as orelhas levantadas, só esperando a hora em que o casal ia brigar. Foi então que os dois se encontraram e o marido falou: “Boa noite, meu amor!” e a mulher respondeu: “Boa noite, meu coração!”.
O diabo ficou furioso e saiu correndo de volta para o inferno falando: “Boa noite, minha merda e meu grande cagalhão!"
Eu sei que uma história como esta não é nenhum conto de fadas como os que costumamos contar às crianças. Mas eu ouvi esta história desde pequena e até hoje encontro muita sabedoria nela.  Isso me faz grata por ter sido parte de uma família que contava histórias, falava coisas engraçadas, e principalmente, ponderava sobre as armadilhas da nossa vida tão comum.
Estamos sujeitos a perder o que temos de mais precioso por causa de escolhas erradas. Tantas vezes, escolhemos brigar, odiar, deixar de perdoar, sem nem saber muito a razão daquilo. Tantas vezes, deixamos o cansaço e a frustração tirar de nós o prazer pelo que temos. Tantas vezes, deixamos de perceber que as armadilhas estão logo ali, atrás da porta!


segunda-feira, 3 de abril de 2017



Dálias, Café e Padrinhos.

A primeira dália do meu jardim floriu esta semana, com extrema generosidade. Plantei dálias porque elas me fazem lembrar de minha madrinha, Dona Jandira. Seu jardim era todo colorido de dálias e ela sempre me levava pra ver as que tinham acabado de florir. Eu era muito pequena, mas acredito que já percebia o milagre da beleza daquelas flores.
Meus padrinhos tinham uma banca na feira onde vendiam café moído na hora. Eu ia à feira com minha mãe e ficava procurando o cheiro do café. Eu sabia que ia achar meu padrinho através dele. Eu me sentia especial porque o meu “Dindinho” trabalhava naquele lugar onde tanta gente ia comprar comida. Havia alguém ali que me conhecia, me chamava pelo nome e me amava muito. Acho que foi assim que o café se tornou o primeiro item da minha lista de compras para sempre.
A casa da “Dindinha” era o lugar onde os passarinhos doentes ou feridos caíam. Ela cuidava do passarinho dando alimento pelo bico com conta-gotas. Ela segurava o bichinho com cuidado e me mostrava de perto para eu fazer carinho nele. Quando o passarinho ficava curado, ele voava e, logo depois, chegava outro passarinho para ser cuidado. Eu acho que eles contavam uns para os outros sobre a “Dindinha”.
Dona Jandira e Seu Mesquita foram meus padrinhos de fé, mas também foram padrinhos de muitos traços de minhas escolhas e gostos. As dálias no jardim, o café e os passarinhos talvez não tivessem o mesmo valor para mim se não estivessem ligados ao afeto e atenção que recebi desse casal simples e amoroso.
A vida está cheia de memórias agradáveis de imagens, cheiros, gostos, sons e texturas ligadas ao afeto que recebemos. Amamos muitas coisas porque elas estão ligadas a pessoas especiais, mas nem sempre percebemos isso. Acho que é por isso que a natureza desperta em nós uma lembrança de um Deus que não vemos e nem tão pouco podemos dizer que entendemos. Mas sentimos que Ele está ali.

Não consigo acreditar que é por acaso que o caqui é tão gostoso, que as folhas são verdes em diversas nuances, que o mar é tão rico em beleza e mistério, que haja flores e insetos tão pequeninos, mas cheios de detalhes como as borboletas. Alguém deve ter prestado atenção em nós quando idealizou isso tudo. Alguém certamente deve ter tentado mostrar afeto por nós quando criou as dálias, o café, os passarinhos e pessoas especiais para serem padrinhos da nossa alma.