domingo, 17 de dezembro de 2017

Para Onde Iremos Nós?

Há dias em que a gente fica pensando na fragilidade da existência humana na Terra. A mulher exuberante, linda e alegre que trabalhou comigo por alguns anos, postou fotos de situações em que estava feliz, passando dias na praia e 15 dias depois havia morrido por causa de um AVC. A doce amiga que faltou à reunião anual das amigas de juventude porque estava febril, piorou e na outra semana, estava na UTI de um hospital por causa de uma infecção generalizada. Notícias assim mexem com alguma coisa muito séria, lá dentro de mim.
Deu caruncho no arroz e eu e meu marido fomos catar os bichinhos. Eles pareciam estar gostando do ambiente farto, espaçoso e tranquilo dos pequenos e brancos grãos de arroz até que, de repente, a gente os afogava, catava e jogava fora.
Fiquei observando o destino dos carunchos e de certa forma, me identifiquei com eles. Estamos felizes, distraídos, fartos. Em poucos segundos, nossa vida muda e a surpresa pode até mesmo ser a morte. Carunchos insignificantes, moscas perturbadoras, cachorros de rua e seres humanos têm o mesmo destino final.
Acho que é por isso que, enquanto fico mais velha, vou perdendo a paciência com os jovens. Lá dentro do meu coração, aparece uma indignação quando vejo o quanto de vida eles desperdiçam em bobagens, vivendo displicentemente seu dia a dia, da mesma maneira como as pessoas fazem com quase tudo que se desperdiça no mundo, desde a água até o tempo.
Fico impaciente também com os velhos porque sabem que a vida acaba, ou melhor, que já está quase acabando, e mesmo assim ficam perdendo um tempão preocupados com doenças, exames, o que faz mal e o que não faz mal.  
Tenho também muita preguiça em relação a assuntos que as mulheres conversam diante de comida: “Vai engordar”!; “Isso é diet”? ; “Só um pedacinho porque estou de dieta.” Ah! Como isso me cansa! A única imagem que me vem à mente é a de alguém impossibilitado de comer, cheio de tubos enfiados pela boca, sonhando talvez em ter um momento especial como o de poder comer um doce gostoso, daqueles que engordam bastante.
Perder a paciência é um defeito que vem com o envelhecimento. Perder é uma prática que vem com o ato de existir. Vamos perdendo jeito, coisas e pessoas importantes ao longo da vida. Ganhamos também outras tantas para perder depois. Ninguém escapa de perder e de, no momento final, tornar-se uma perda na vida de outros também.
Em dias assim, fico grata por ter encravados no coração alguns textos bíblicos que fazem parte do meu repertório de fé desde criança. Lembro-me de Jesus perguntando aos seus discípulos se eles queriam deixá-lo e da resposta que eles Lhe deram: “Para onde iremos nós, se só Tu tens as palavras de vida eterna”?

Para onde iria eu em um dia como hoje? Não sei. Meu coração se aquieta quando se aproxima desta certeza: só Tu tens palavras de vida eterna. 

sábado, 13 de maio de 2017

Panos Brancos ao Sol

Hoje, o sol de outono brilhou e deixou o céu sem nuvens. Dia perfeito para exercitar uma a mais das minhas loucuras. Em dias assim, se tenho tempo, tiro os panos de prato que estão um pouco amarelados da gaveta e lavo todos, deixando de molho e depois quarando ao sol. Faço o mesmo com os paninhos bordados e de crochê que herdei de minha mãe.
Meu varal fica lindo, com todos aqueles panos brancos dançando com o vento! Não sei ao certo a razão, mas para mim, este é um ritual de pura alegria e paz.
Talvez tenha herdado este sentimento por ser bisneta de lavadeira. Minha bisavó Mariquinha era uma açoriana que veio sozinha para o Brasil aos quinze anos. Nunca entendi tanta coragem, mesmo sabendo que ela estava fugindo de uma vida difícil, sem mãe e tendo que enfrentar o medo que todo açoriano experimenta quando tem o chão tremendo debaixo dos pés por causa dos vulcões.
Não posso dizer que sei o que é ter o chão tremendo debaixo dos pés, a menos que seja figurativamente, em uma ou duas situações durante toda a minha vida. Ela, por sua vez, deixou um solo instável por outro, viajando de navio para o Brasil, sem saber o que ia encontrar por aqui. Lavadeira e viúva ainda nova, ela criou muitos filhos com seu trabalho. Construiu casa, viveu com dignidade e seu nome foi dado à rua onde morou em Petrópolis: Rua Maria José Janiques. Não era nobre, política ou rica, mas a lavadeira virou nome de rua. Deve ter marcado de alguma forma o lugar onde viveu.
Minha bisavó foi a única avó que conheci. Ajudou a cuidar de mim quando era bebê e cantava cantigas portuguesas para eu dormir. Morreu velhinha, sem nunca ter se consolado da dor de viver mais do que Guiomar, sua filha e mãe de meu pai. Ela deixou uma herança impalpável. Deixou o perfume doce de sua presença e o exemplo de força e coragem.
Meus panos de prato são bandeiras ao vento, mostrando com orgulho, para mim mesma, que também sei lavar roupas, que sobrevivi ao terreno instável da vida, que também tive coragem de olhar o porto e me lançar em jornadas difíceis e arriscadas para lugares desconhecidos.
Os panos voltam para a gaveta, branquinhos. Quem me vê mais de perto jura que eu estou maluca por gostar tanto desse ritual. Eu mesma não tenho certeza sobre a minha sanidade mental. Mas sei que panos de prato no varal possuem um significado que vai além do que os outros podem ver. Eles talvez façam parte daquela verdade eterna, daquele sentido profundo que existe no subterrâneo da existência humana. Eles talvez sejam mesmo as minhas bandeiras celebrando uma vida que vai além do que posso explicar.



segunda-feira, 24 de abril de 2017

O Diabo Atrás da Porta

Por vezes sem conta, tenho vontade de escrever um livro contando histórias que ouvi de minha mãe e minhas tias. Elas, por sua vez, nos contavam histórias que ouviam de minha avó, Dona Maroca. Não cheguei a conhecer minha avó pessoalmente, mas o sentimento que tenho é de saber como ela era e de admirá-la muito. Sempre achei que ela ajudou a construir nas mulheres da família uma alma aberta, alegre, cheia de fé.
Uma dessas histórias tem me ajudado muito a entender algumas armadilhas da vida e ao contá-la, espero que ajude outras pessoas também. Esta é a história de um casal que morava na roça. O homem era agricultor e sua mulher era dona de casa. Os dois se amavam muito e sempre demonstravam isso. Quando o marido acordava, ele dizia: “Bom dia, meu amor!”. A esposa respondia com a mesma doçura: “Bom dia, meu coração!”.
Quando o homem saía para trabalhar na lavoura, ele beijava a mulher e dizia: ”Até logo, meu amor!”. Ela o acompanhava até à porta, abraçava-o e dizia: ”Até logo, meu coração!”
O mesmo acontecia quando ele chegava da roça e ela o recebia com o jantar quentinho. Os dois se abraçavam e diziam: “Boa noite, meu amor!” e “Boa noite, meu coração!”
Conta-se que o diabo já estava cansado daquele carinho todo e resolveu que ia fazer aquele casal brigar a todo custo. O diabo acordou mais cedo, foi pra casa da roça e preparou tudo. Ele ficou atrás da porta, com cara de deboche, vendo o casal se despedir naquela manhã, como todos os dias: “Até logo, meu amor!” e “Até, logo, meu coração!”
Quando o homem chegou ao paiol onde guardava suas ferramentas de trabalho, sentiu um cheiro horroroso.  Ele foi pegar as ferramentas e tomou um grande susto. Todas elas estavam cobertas de merda. Era difícil aguentar o cheiro, mas ele teve que passar o dia todo lavando aquilo tudo, sem poder trabalhar na roça.
Ao mesmo tempo, quando a mulher foi fazer a comida, sentiu um cheiro terrível dentro da cozinha. Ela foi pegar as panelas e também tomou um grande susto. Todas as panelas e utensílios estavam cobertos de merda. Ela até chorou muito, mas não adiantava ficar ali apenas chorando.  A mulher então passou o dia lavando aquela merda toda, fervendo tudo e nem teve tempo para fazer comida alguma.
O diabo ria muito atrás da porta. Ele estava certo de que, depois de um dia cheio de merda como aquele, o casal ia acabar brigando. Ele estava ali, escondido, apenas esperando o grande momento em que o marido voltaria para casa e seu plano estaria completo.
À noitinha, como todos os dias, o marido voltou da roça. Ele tinha o olhar muito cansado e estava frustrado por não ter podido ganhar o pão de cada dia por causa da merda que teve que limpar. A mulher o recebeu à porta, com o mesmo rosto cansado e muito triste porque sabia que não teria nada para servir no jantar. Ela tinha passado o dia todo limpando merda também.
O diabo ficou rindo atrás da porta, com as orelhas levantadas, só esperando a hora em que o casal ia brigar. Foi então que os dois se encontraram e o marido falou: “Boa noite, meu amor!” e a mulher respondeu: “Boa noite, meu coração!”.
O diabo ficou furioso e saiu correndo de volta para o inferno falando: “Boa noite, minha merda e meu grande cagalhão!"
Eu sei que uma história como esta não é nenhum conto de fadas como os que costumamos contar às crianças. Mas eu ouvi esta história desde pequena e até hoje encontro muita sabedoria nela.  Isso me faz grata por ter sido parte de uma família que contava histórias, falava coisas engraçadas, e principalmente, ponderava sobre as armadilhas da nossa vida tão comum.
Estamos sujeitos a perder o que temos de mais precioso por causa de escolhas erradas. Tantas vezes, escolhemos brigar, odiar, deixar de perdoar, sem nem saber muito a razão daquilo. Tantas vezes, deixamos o cansaço e a frustração tirar de nós o prazer pelo que temos. Tantas vezes, deixamos de perceber que as armadilhas estão logo ali, atrás da porta!


segunda-feira, 3 de abril de 2017



Dálias, Café e Padrinhos.

A primeira dália do meu jardim floriu esta semana, com extrema generosidade. Plantei dálias porque elas me fazem lembrar de minha madrinha, Dona Jandira. Seu jardim era todo colorido de dálias e ela sempre me levava pra ver as que tinham acabado de florir. Eu era muito pequena, mas acredito que já percebia o milagre da beleza daquelas flores.
Meus padrinhos tinham uma banca na feira onde vendiam café moído na hora. Eu ia à feira com minha mãe e ficava procurando o cheiro do café. Eu sabia que ia achar meu padrinho através dele. Eu me sentia especial porque o meu “Dindinho” trabalhava naquele lugar onde tanta gente ia comprar comida. Havia alguém ali que me conhecia, me chamava pelo nome e me amava muito. Acho que foi assim que o café se tornou o primeiro item da minha lista de compras para sempre.
A casa da “Dindinha” era o lugar onde os passarinhos doentes ou feridos caíam. Ela cuidava do passarinho dando alimento pelo bico com conta-gotas. Ela segurava o bichinho com cuidado e me mostrava de perto para eu fazer carinho nele. Quando o passarinho ficava curado, ele voava e, logo depois, chegava outro passarinho para ser cuidado. Eu acho que eles contavam uns para os outros sobre a “Dindinha”.
Dona Jandira e Seu Mesquita foram meus padrinhos de fé, mas também foram padrinhos de muitos traços de minhas escolhas e gostos. As dálias no jardim, o café e os passarinhos talvez não tivessem o mesmo valor para mim se não estivessem ligados ao afeto e atenção que recebi desse casal simples e amoroso.
A vida está cheia de memórias agradáveis de imagens, cheiros, gostos, sons e texturas ligadas ao afeto que recebemos. Amamos muitas coisas porque elas estão ligadas a pessoas especiais, mas nem sempre percebemos isso. Acho que é por isso que a natureza desperta em nós uma lembrança de um Deus que não vemos e nem tão pouco podemos dizer que entendemos. Mas sentimos que Ele está ali.

Não consigo acreditar que é por acaso que o caqui é tão gostoso, que as folhas são verdes em diversas nuances, que o mar é tão rico em beleza e mistério, que haja flores e insetos tão pequeninos, mas cheios de detalhes como as borboletas. Alguém deve ter prestado atenção em nós quando idealizou isso tudo. Alguém certamente deve ter tentado mostrar afeto por nós quando criou as dálias, o café, os passarinhos e pessoas especiais para serem padrinhos da nossa alma.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Despindo a Árvore

Muita gente deixa para desfazer a árvore de Natal no Dia de Reis, 6 de janeiro. Eu não tenho um dia específico para fazer isso. Gosto de guardar tudo assim que o Ano Novo começa, exercitando minha necessidade, quase compulsiva, de arrumar, organizar, começar de novo.
Pela primeira vez, depois de ter perdido pai e mãe, resolvi chamar para o meu lado a responsabilidade de fazer o Natal acontecer em minha família. Comprei árvore grande, bolinhas de diversos tamanhos e modelos, luzes e outros enfeites. Decidi que assumiria com esforço o papel de meus pais, fazendo do Natal um momento especial para ficarmos juntos, celebrarmos o nascimento de Jesus, trocarmos presentes e deixar a emoção chegar, olhando as luzes piscando na árvore toda enfeitada.
Meu pai era o guardião da árvore de Natal em nossa casa. Ele montava tudo pacientemente. Na véspera de Natal, todos nós deixávamos nossos sapatos ao pé da árvore. Pela manhã, minha mãe se levantava silenciosamente e ia ao quarto onde ficava o piano. Ela então tocava um hino de Natal: Povos, cantai! Jesus nasceu! À Terra, a luz desceu!... Nós deixávamos a cama depressa e íamos correndo ver os presentes colocados debaixo do nosso sapato. Isso aconteceu regularmente, enquanto meus pais moraram na mesma casa, por mais de 50 anos.
Não conseguiria descrever a emoção que sempre senti, mesmo depois de adulta, ouvindo o piano que me acordava na manhã do Natal. Minha mãe já estava idosa, enxergava mal, mas tocava o hino mesmo assim, por insistência minha.
O tempo passou, meus pais se foram, aquela casa não é mais o nosso lar. Por isso, tomei as rédeas da situação e transferi o Natal oficialmente para minha casa. Quando fui montar a árvore, meu marido me disse que havia uma caixa de papelão guardada no seu quarto de ferramentas e que ele achava que dentro dela estavam os enfeites de Natal da árvore do meu pai. Fiquei sem fôlego com a notícia.
Para minha grata surpresa, estava tudo lá. Bolinhas de Natal que eu reconhecia dentro das memórias da minha infância. Os enfeites que meus pais compraram quando viajaram para os Estados Unidos, em 1981. Sininhos que eu tinha comprado quando ainda era solteira e morava com meus pais. Tudo em perfeito estado, aguardando dentro da caixa para fazer parte de um Natal feliz outra vez.
Coloquei todos os enfeites, novos e antigos, na árvore de Natal. Pedi ao meu marido que fizesse as honras, colocando a estrela no topo da árvore. Olhei de longe, olhei de perto, deixei as lágrimas rolarem de emoção quando as luzes foram acesas.
Fiquei horas na cozinha, fiz muita comida, arrumei tudo, recebi a família e tive o Natal que esperava. Cantei, chorei e, principalmente, sorri muito. Foi um Natal como eu queria fazer acontecer.
Hoje, depois da celebração do Ano Novo, chegou o dia de despir a árvore. Fui tirando enfeite por enfeite e, de repente, me senti como quem colhe frutos. Perguntei pra mim mesma: que frutos são estes? O que estou colhendo aqui?
Eu colho da árvore os frutos de um passado feliz. Eu ponho nas mãos os enfeites que estão imantados de afeto e boas lembranças. Eu retiro cada um com cuidado enquanto tenho uma deliciosa sensação de que me reconheço neles, de que sei quando começaram a fazer parte dos meus natais e de tudo que já vivi. Eu seguro delicadamente os enfeites antigos e sinto o calor das mãos do meu pai, enquanto meus ouvidos insistem em me fazer lembrar do som do piano me dizendo: A Graça infinda ao mundo vem, na Gruta de Belém, na Gruta de Belém!