All the Lonely People
Minha mente insiste em ouvir uma
canção dos Beatles em dias como hoje. Fico cantarolando por dentro: All the lonely people, where do they all
come from? All the lonely people, where do they all belong?
Morar em lugar pequeno dá pra gente
uma possibilidade de enxergar as pessoas. Assim, também é mais fácil detectar
aquelas que se destacam por saírem completamente do padrão. Pessoas que parecem
ter pulado pra fora das páginas de um livro, passam por nós na rua, ficam
debruçadas na janelas nos vendo passar, cavalgam pela estrada enquanto estamos
indo ou vindo de carro de algum lugar.
Hoje, uma dessas pessoas se foi. Um
homem rude, barbado até o peito, cabelos compridos e um corpo que não via banho
com nenhuma frequência. Dono de muitas terras, mas sempre mal vestido, montado
no seu cavalo como se fosse um guerreiro voltando de uma batalha perdida.
De longe, na primeira vez que o vi,
parecia um Don Quixote mal acabado, um herói cavaleiro daqueles que a gente só
vê nas estradas de terra do interior do Brasil. Depois, convivendo com seu ir e
vir na estrada, dava pra gente perceber que estava diante de um enigma. Como
aquele homem tão rico, cheio de terras e posses, andava assim tão largado,
sujo, sem família, sem amigos, sem sorrisos.
Demos carona a ele em um dos raros
dias em que estava sem seu cavalo e comentamos sobre a falta de chuva. A gente
molha a planta, mas nem parece que molhou. Fica tudo seco, nada muda. Mas
quando chove, mesmo que por pouco tempo, a paisagem toda muda. As plantas ficam
mais verdes de repente. Ao nosso comentário, ele respondeu: isso é porque
ninguém molha a planta como Deus. A gente tenta imitar, mas não é igual.
Fiquei surpresa com sua fala mansa
naquele momento. Um jeito sereno de identificar na natureza o toque de Alguém
maior que ele, maior que nós, muito maior que tudo.
Ele morreu tentando salvar uma vaca
do atoleiro. Tirou suas roupas, entrou no brejo e, ninguém sabe como, ficou
ali, preso com o animal, sendo os dois achados mortos, hoje de manhã.
Viveu e morreu na companhia de seus
únicos parceiros – os animais. Vida solitária, silenciosa, parecendo triste
para mim, mas talvez não para ele.
Na cidade, todo mundo ficou um pouco
triste, pensativo, surpreso mesmo com sua morte. Pessoas assim parecem imortais
como os personagens de livros. Ficam pra sempre nas histórias que o povo conta.
Ficam pra sempre como parte da paisagem que já não está mais ali. De onde eles
vêm? A que lugar eles pertencem? Assim como os Beatles na canção, eu fico
pensando sobre todas essas pessoas solitárias.