O Diabo Atrás da Porta
Por vezes sem conta, tenho vontade de escrever
um livro contando histórias que ouvi de minha mãe e minhas tias. Elas, por sua
vez, nos contavam histórias que ouviam de minha avó, Dona Maroca. Não cheguei a
conhecer minha avó pessoalmente, mas o sentimento que tenho é de saber como ela
era e de admirá-la muito. Sempre achei que ela ajudou a construir nas mulheres
da família uma alma aberta, alegre, cheia de fé.
Uma dessas histórias tem me ajudado muito a
entender algumas armadilhas da vida e ao contá-la, espero que ajude outras
pessoas também. Esta é a história de um casal que morava na roça. O homem era
agricultor e sua mulher era dona de casa. Os dois se amavam muito e sempre
demonstravam isso. Quando o marido acordava, ele dizia: “Bom dia, meu amor!”. A
esposa respondia com a mesma doçura: “Bom dia, meu coração!”.
Quando o homem saía para trabalhar na lavoura,
ele beijava a mulher e dizia: ”Até logo, meu amor!”. Ela o acompanhava até à
porta, abraçava-o e dizia: ”Até logo, meu coração!”
O mesmo acontecia quando ele chegava da roça e
ela o recebia com o jantar quentinho. Os dois se abraçavam e diziam: “Boa
noite, meu amor!” e “Boa noite, meu coração!”
Conta-se que o diabo já estava cansado daquele
carinho todo e resolveu que ia fazer aquele casal brigar a todo custo. O diabo
acordou mais cedo, foi pra casa da roça e preparou tudo. Ele ficou atrás da
porta, com cara de deboche, vendo o casal se despedir naquela manhã, como todos
os dias: “Até logo, meu amor!” e “Até, logo, meu coração!”
Quando o homem chegou ao paiol onde guardava
suas ferramentas de trabalho, sentiu um cheiro horroroso. Ele foi pegar as ferramentas e tomou um grande
susto. Todas elas estavam cobertas de merda. Era difícil aguentar o cheiro, mas
ele teve que passar o dia todo lavando aquilo tudo, sem poder trabalhar na
roça.
Ao mesmo tempo, quando a mulher foi fazer a
comida, sentiu um cheiro terrível dentro da cozinha. Ela foi pegar as panelas e
também tomou um grande susto. Todas as panelas e utensílios estavam cobertos de
merda. Ela até chorou muito, mas não adiantava ficar ali apenas chorando. A mulher então passou o dia lavando aquela
merda toda, fervendo tudo e nem teve tempo para fazer comida alguma.
O diabo ria muito atrás da porta. Ele estava
certo de que, depois de um dia cheio de merda como aquele, o casal ia acabar
brigando. Ele estava ali, escondido, apenas esperando o grande momento em que o
marido voltaria para casa e seu plano estaria completo.
À noitinha, como todos os dias, o marido voltou
da roça. Ele tinha o olhar muito cansado e estava frustrado por não ter podido
ganhar o pão de cada dia por causa da merda que teve que limpar. A mulher o
recebeu à porta, com o mesmo rosto cansado e muito triste porque sabia que não
teria nada para servir no jantar. Ela tinha passado o dia todo limpando merda
também.
O diabo ficou rindo atrás da porta, com as
orelhas levantadas, só esperando a hora em que o casal ia brigar. Foi então que
os dois se encontraram e o marido falou: “Boa noite, meu amor!” e a mulher
respondeu: “Boa noite, meu coração!”.
O diabo ficou furioso e saiu correndo de volta
para o inferno falando: “Boa noite, minha merda e meu grande cagalhão!"
Eu sei que uma história como esta não é nenhum
conto de fadas como os que costumamos contar às crianças. Mas eu ouvi esta
história desde pequena e até hoje encontro muita sabedoria nela. Isso me faz grata por ter sido parte de uma
família que contava histórias, falava coisas engraçadas, e principalmente,
ponderava sobre as armadilhas da nossa vida tão comum.
Estamos sujeitos a perder o que temos de mais
precioso por causa de escolhas erradas. Tantas vezes, escolhemos brigar, odiar,
deixar de perdoar, sem nem saber muito a razão daquilo. Tantas vezes, deixamos
o cansaço e a frustração tirar de nós o prazer pelo que temos. Tantas vezes,
deixamos de perceber que as armadilhas estão logo ali, atrás da porta!