segunda-feira, 24 de abril de 2017

O Diabo Atrás da Porta

Por vezes sem conta, tenho vontade de escrever um livro contando histórias que ouvi de minha mãe e minhas tias. Elas, por sua vez, nos contavam histórias que ouviam de minha avó, Dona Maroca. Não cheguei a conhecer minha avó pessoalmente, mas o sentimento que tenho é de saber como ela era e de admirá-la muito. Sempre achei que ela ajudou a construir nas mulheres da família uma alma aberta, alegre, cheia de fé.
Uma dessas histórias tem me ajudado muito a entender algumas armadilhas da vida e ao contá-la, espero que ajude outras pessoas também. Esta é a história de um casal que morava na roça. O homem era agricultor e sua mulher era dona de casa. Os dois se amavam muito e sempre demonstravam isso. Quando o marido acordava, ele dizia: “Bom dia, meu amor!”. A esposa respondia com a mesma doçura: “Bom dia, meu coração!”.
Quando o homem saía para trabalhar na lavoura, ele beijava a mulher e dizia: ”Até logo, meu amor!”. Ela o acompanhava até à porta, abraçava-o e dizia: ”Até logo, meu coração!”
O mesmo acontecia quando ele chegava da roça e ela o recebia com o jantar quentinho. Os dois se abraçavam e diziam: “Boa noite, meu amor!” e “Boa noite, meu coração!”
Conta-se que o diabo já estava cansado daquele carinho todo e resolveu que ia fazer aquele casal brigar a todo custo. O diabo acordou mais cedo, foi pra casa da roça e preparou tudo. Ele ficou atrás da porta, com cara de deboche, vendo o casal se despedir naquela manhã, como todos os dias: “Até logo, meu amor!” e “Até, logo, meu coração!”
Quando o homem chegou ao paiol onde guardava suas ferramentas de trabalho, sentiu um cheiro horroroso.  Ele foi pegar as ferramentas e tomou um grande susto. Todas elas estavam cobertas de merda. Era difícil aguentar o cheiro, mas ele teve que passar o dia todo lavando aquilo tudo, sem poder trabalhar na roça.
Ao mesmo tempo, quando a mulher foi fazer a comida, sentiu um cheiro terrível dentro da cozinha. Ela foi pegar as panelas e também tomou um grande susto. Todas as panelas e utensílios estavam cobertos de merda. Ela até chorou muito, mas não adiantava ficar ali apenas chorando.  A mulher então passou o dia lavando aquela merda toda, fervendo tudo e nem teve tempo para fazer comida alguma.
O diabo ria muito atrás da porta. Ele estava certo de que, depois de um dia cheio de merda como aquele, o casal ia acabar brigando. Ele estava ali, escondido, apenas esperando o grande momento em que o marido voltaria para casa e seu plano estaria completo.
À noitinha, como todos os dias, o marido voltou da roça. Ele tinha o olhar muito cansado e estava frustrado por não ter podido ganhar o pão de cada dia por causa da merda que teve que limpar. A mulher o recebeu à porta, com o mesmo rosto cansado e muito triste porque sabia que não teria nada para servir no jantar. Ela tinha passado o dia todo limpando merda também.
O diabo ficou rindo atrás da porta, com as orelhas levantadas, só esperando a hora em que o casal ia brigar. Foi então que os dois se encontraram e o marido falou: “Boa noite, meu amor!” e a mulher respondeu: “Boa noite, meu coração!”.
O diabo ficou furioso e saiu correndo de volta para o inferno falando: “Boa noite, minha merda e meu grande cagalhão!"
Eu sei que uma história como esta não é nenhum conto de fadas como os que costumamos contar às crianças. Mas eu ouvi esta história desde pequena e até hoje encontro muita sabedoria nela.  Isso me faz grata por ter sido parte de uma família que contava histórias, falava coisas engraçadas, e principalmente, ponderava sobre as armadilhas da nossa vida tão comum.
Estamos sujeitos a perder o que temos de mais precioso por causa de escolhas erradas. Tantas vezes, escolhemos brigar, odiar, deixar de perdoar, sem nem saber muito a razão daquilo. Tantas vezes, deixamos o cansaço e a frustração tirar de nós o prazer pelo que temos. Tantas vezes, deixamos de perceber que as armadilhas estão logo ali, atrás da porta!


segunda-feira, 3 de abril de 2017



Dálias, Café e Padrinhos.

A primeira dália do meu jardim floriu esta semana, com extrema generosidade. Plantei dálias porque elas me fazem lembrar de minha madrinha, Dona Jandira. Seu jardim era todo colorido de dálias e ela sempre me levava pra ver as que tinham acabado de florir. Eu era muito pequena, mas acredito que já percebia o milagre da beleza daquelas flores.
Meus padrinhos tinham uma banca na feira onde vendiam café moído na hora. Eu ia à feira com minha mãe e ficava procurando o cheiro do café. Eu sabia que ia achar meu padrinho através dele. Eu me sentia especial porque o meu “Dindinho” trabalhava naquele lugar onde tanta gente ia comprar comida. Havia alguém ali que me conhecia, me chamava pelo nome e me amava muito. Acho que foi assim que o café se tornou o primeiro item da minha lista de compras para sempre.
A casa da “Dindinha” era o lugar onde os passarinhos doentes ou feridos caíam. Ela cuidava do passarinho dando alimento pelo bico com conta-gotas. Ela segurava o bichinho com cuidado e me mostrava de perto para eu fazer carinho nele. Quando o passarinho ficava curado, ele voava e, logo depois, chegava outro passarinho para ser cuidado. Eu acho que eles contavam uns para os outros sobre a “Dindinha”.
Dona Jandira e Seu Mesquita foram meus padrinhos de fé, mas também foram padrinhos de muitos traços de minhas escolhas e gostos. As dálias no jardim, o café e os passarinhos talvez não tivessem o mesmo valor para mim se não estivessem ligados ao afeto e atenção que recebi desse casal simples e amoroso.
A vida está cheia de memórias agradáveis de imagens, cheiros, gostos, sons e texturas ligadas ao afeto que recebemos. Amamos muitas coisas porque elas estão ligadas a pessoas especiais, mas nem sempre percebemos isso. Acho que é por isso que a natureza desperta em nós uma lembrança de um Deus que não vemos e nem tão pouco podemos dizer que entendemos. Mas sentimos que Ele está ali.

Não consigo acreditar que é por acaso que o caqui é tão gostoso, que as folhas são verdes em diversas nuances, que o mar é tão rico em beleza e mistério, que haja flores e insetos tão pequeninos, mas cheios de detalhes como as borboletas. Alguém deve ter prestado atenção em nós quando idealizou isso tudo. Alguém certamente deve ter tentado mostrar afeto por nós quando criou as dálias, o café, os passarinhos e pessoas especiais para serem padrinhos da nossa alma.