terça-feira, 22 de julho de 2014

Formiga
Naquele dia, Formiga saiu do buraco sentindo que alguma coisa diferente ia acontecer. Você sabe. Deve ser difícil para uma formiga pensar coisa diferente das coisas que todo mundo pensa. As formigas fazem tudo juntinhas. São muito organizadas. Não ficam parando longe do grupo para fazer poesia ou inventar moda.
Formiga sentiu, mas não disse nada pra ninguém. Seguiu o grupo de um jeito bem obediente até o destino final. O objetivo do dia era chegar ao topo do bolo de aniversário que os espiões tinham visto da janela da sala de jantar. Entrar na casa foi fácil. Subir pelo pé da mesa até que foi moleza. Mas agora, estava todo mundo camuflado debaixo da borda do prato, estudando uma forma de subir e não escorregar naquele creme branco cheio de ondinhas que cobria todos os lados do bolo.
As formigas são muito teimosas e acabaram encontrando um jeito de subir as paredes do bolo, umas empurrando as outras, até chegar ao topo.
O topo era tudo o que elas tinham imaginado. Ele era lindo, cheio de pequenas rosas coloridas sobre o creme muito branco. Todas as formigas ficaram muito satisfeitas por terem conquistado o topo do bolo. Todas, menos uma. É claro que Formiga teve lá dentro de seu coração formiguento um certo sentimento de vitória e sucesso. O problema é que Formiga não gostou muito do topo. O creme da cobertura era muito escorregadio. Mal dava pra ficar em pé sem ter que se escorar em alguém. Às vezes, as patas também atolavam e algumas formigas deixavam de se mexer por um tempão. Aí, tinha que vir outro grupo e dar um empurrão pra que as formigas paralisadas começassem a andar outra vez.
As rosas coloridas também eram a maior enganação. Elas eram feitas de um material que tinha gosto de plástico. Só beleza. Açúcar, que é bom, neca.
Foi ali, no topo do bolo, que o sentimento voltou para a cabeça de Formiga. De repente, o sentimento virou pergunta: ‘Será que o topo do bolo é tudo?’ Formiga se assustou com a pergunta. Mal teve tempo de desassustar, lá veio outra pergunta: ‘O que será que tem embaixo desse creme escorregadio, cheio de flores bonitinhas e sem graça?’
Formiga tampou os olhos e os ouvidos pra ver se as perguntas paravam de formigar em sua cabeça. Até que elas pararam. Mas aí, a cabeça mandou uma idéia: ‘Que tal descobrir o que tem por baixo de tudo?’
Formiga mal pode acreditar que tinha começado a ter idéias também. Desde pequenininha, Formiga tinha aprendido que o importante era seguir o grupo e alcançar o objetivo de cada dia. Pensar, sentir, perguntar, ter ideia, tudo isso não era coisa de formiga. Não se podia fazer essas coisas longe do grupo.
Formiga não conseguia fazer aquilo parar. Quanto mais tentava fingir de que estava gostando do topo do bolo, mais se atolava e escorregava. Suas patinhas de trás se atolaram tanto que, de repente, Formiga sentiu solo firme por baixo do creme. Formiga deixou que as patas da frente também afundassem mais um pouco até sentir bastante firmeza. Depois disso, não conseguiu resistir mais. Afundou também a cabeça e foi cavando com força para se livrar do creme e chegar mais fundo na parte de baixo do bolo. Agora estava tudo escuro. O bolo tinha cheiro e cor de uma coisa que Formiga já conhecia bem até de nome. Era um bolo de chocolate daqueles bem escurinhos e gostosos. Formiga sentiu vontade de ir mais fundo. Vontade também não era coisa de formiga, mas aquela vontade não parava de voltar.
Estava tudo escuro do jeito que era na terra, só que lá dentro do bolo era mais apertado para se mexer. Formiga tinha que fazer muita força para cavar mais fundo. Ficava tudo mais difícil porque agora formiga não tinha ninguém do grupo para ajudar. Formiga viu que esse seria um trabalho muito solitário, mas decidiu insistir. Entendeu que se quisesse ir mais fundo ia precisar ir mais devagar. Pelo menos, sabia que durante a viagem não faltaria comida. O bolo estava delicioso.
Formiga começou a ficar cansada. Pensou em desistir, mas a cabeça ainda estava mandando uns pensamentos e vontades para fazer com que a aventura continuasse. De repente, Formiga começou a sentir um cheiro muito gostoso. O cheiro vinha lá de baixo e deu ânimo para que Formiga continuasse cavando sem parar, enfrentando o medo e a solidão.
As patinhas da frente começaram a tocar alguma coisa mais macia. Formiga se apressou um pouco mais e consegui chegar inteira a um lugar onde havia um doce maravilhoso. Era o recheio, feito com geleia de morangos, cheia de pedaços da fruta. Formiga estava agora em um lugar maravilhoso. A cabeça pensava e comemorava dizendo: ‘ Valeu a pena enfrentar o escuro do caminho! ‘ Formiga concordava com esse pensamento. Isso sim é que era lugar gostoso e rico para comer e se lambuzar.
Ainda estava pensando assim quando uma faca enorme cortou o bolo. Formiga viu a faca passar de um lado e depois do outro, no lugar onde estava. Depois, veio aquela sensação de que tudo estava se mexendo. Formiga ficou parada de medo. Seu susto foi ainda maior quando eu tirei a primeira garfada da fatia de bolo.
Quando encontrei Formiga, sua cabeça estava coberta pelas patinhas da frente. No início, achei que devia jogar aquela parte do bolo fora, mas depois fiquei olhando pra ver o que Formiga ia fazer. Ficamos ali parados, olhando um para o outro, até que Formiga, com a maior coragem do mundo, subiu pelo meu garfo e me encarou. Confesso que nunca tinha aprendido a falar ou nem mesmo entender Formiguês, mas olhei bem para Formiga e, no mesmo instante, fiquei sabendo de toda essa história. Formiga me contou como havia se desgarrado do grupo para tentar chegar mais fundo no bolo. Contou também da sua alegria em poder provar o recheio de geleia de morangos, que era a coisa mais doce e gostosa que já tinha experimentado em toda sua vida de formiga.
Depois de ouvir tudo com atenção, deixei que Formiga subisse pelo meu dedo e procurei até encontrar o grupo de formigas que já tinham descido do bolo e se encaminhavam para subir a parede da janela que dava para o jardim. Disse adeus a Formiga e deixei que descesse do meu dedo. O grupo nem percebeu quando Formiga entrou na fila de volta pra casa. Só eu e Formiga é que sabíamos de sua história.
Não sei o que Formiga fez depois que chegou em casa. Às vezes fico imaginando como foi que contou sua história para as outras formigas. Talvez, em vez de contar, Formiga tenha virado poeta ou começado a pintar quadros muito bonitos. Talvez tenha começado a fazer música. Quem sabe, às vezes, Formiga fique só olhando para cima e lembrando do gosto do recheio.

Só sei de uma coisa: Formiga ficou diferente depois que foi fundo no bolo. Acho que aprendeu a fazer outra coisa que eu não sei se as formigas fazem: Formiga aprendeu a sonhar. 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Juca

Eu sempre disse que queria o bem de todos os animais, inclusive dos cachorros, mas não gostaria de ficar muito perto deles. Não tive um cachorrinho quando eu era criança, a não ser um cachorro de pelúcia que minha mãe deu pra gente “cuidar”. Ele dormia no banheiro, dentro de um caixote e a gente o cobria com um pano velho. Não latia, não fazia nada de errado e nem de certo. A gente embarcou na fantasia por uns dias e depois se tocou de que aquilo não era o cachorro tão sonhado.
Quando meu filho era pequeno, eu também não quis ter um cachorro. Eu já não dava conta de cuidar de nós dois e não queria me sentir responsável por mais uma coisa viva, sem me sentir capaz de cuidar dela também.
Sendo assim, arrumei uma gata pra gente. Ela era independente e ficou muito linda quando cresceu. Os gatos não são tão carentes de atenção quanto os cachorros. Acho que eles exigem menos. Gosto disso, como todo bom egoísta que se preze.
Agora que estamos na roça, vivo rodeada de animais, mas não sou a pessoa responsável por cuidar deles. As galinhas, cavalos, vacas e o que mais tivermos no momento, na sua maioria não têm nem nome. Eu os vejo, admiro, fico cheia de alegria quando estão pastando no meu quintal, mas me eximo da responsabilidade por seu bem-estar com um grande alívio de consciência.
Perdemos várias aves do galinheiro para a onça, por mais de uma vez. Fiquei chateada, mas nada que me tirasse o sono. Pensei na dureza da vida, meditei sobre como é rude a existência dos seres, humanos ou não, vivendo nesse mundo nem sempre planejado pra gerar felicidade.
Para minha surpresa, no entanto, tive de me render aos apelos para que tivéssemos um cão vira latas que nos desse sinal se, por ventura, a onça voltasse a rondar o quintal. Foi assim que pegamos o Juca ainda filhote. Ele tinha outros irmãos e irmãs, mas só ele tinha ficado cego de um olho por causa da unhada de um gato. Ele era zarolho, mas também era o único malhado, do jeito que eu tinha imaginado.
Levamos o Juca pra casa e eu estava um pouco incerta de que seria uma boa dona pra ele. Sempre tive certo complexo de inferioridade por não ter sido a mãe que gostaria de ter sido pro meu filho, e pensava que o Juca ia descobrir meus defeitos como dona de cachorro também.
Eu comecei devagar, dando ordens, colocando limites, servindo a comida, arrumando a caminha e quando eu vi, já estava deitada no chão, abraçando o danadinho. O Juca tinha uma coisa nobre no seu olhar de um olho só. Ele era um cão carinhoso, mas discreto. Ele não disputava atenção com ninguém. Tinha atenção, ele curtia. Não tinha, ele se virava. Ele era filhote, mas parecia mais maduro do que muita gente já crescida.
Bem, foi caso de amor mesmo. Eu tive que me render àquela criatura de Deus, àquele cachorro bom e gentil que veio morar com a gente.
Só que ele ficou doente. Mesmo vacinado, ele começou a tremer as patas traseiras e foi, aos poucos, perdendo o movimento normal. Ele firmava os movimentos nas patas dianteiras e arrastava as outras com muito esforço. Ele ficou bem magro e sentia dores porque tinha o olhar triste e chorava quando estava dormindo.
Fizemos o que podíamos, mas nada parecia adiantar. Ele, por sua vez, não perdeu a nobreza nem por um minuto.
Quando chegava do trabalho, ele vinha correndo, todo desengonçado, pra me encontrar. Ele demonstrava tanto carinho por mim que ficava constrangida por não saber o que fazer para curá-lo. Eu o abraçava bem perto do meu peito e dizia o quanto o amava. Ele levantava a cabecinha para o céu e recebia meu carinho no pescoço, como se sua vida já valesse a pena só por ter aquele momento comigo.
Um dia, quando estávamos só nós dois em casa, chorei muito quando entendi que ele não ia estar vivo por muito tempo. Cheguei bem perto dele e disse: Juca, eu amo muito você e estou muito triste porque acho que você vai morrer. Eu quero pedir pra você procurar o meu pai quando você for pro Céu. Ele vai adorar ter um cachorrinho maravilhoso como você por lá. Se ele estivesse aqui, ia curtir você demais. Então, se você for pra lá, fica com ele também!
Juca morreu. Ele vinha se aguentando, tentando viver da melhor forma que podia, sem um dos olhos e sem o movimento das pernas traseiras. Ele era uma fonte de carinho! Eu me rendi à sua amizade e fico feliz porque tive a chance de viver momentos felizes e tristes com essa criatura especial.
Juca me deu mais motivo pra andar com humildade diante da vida. Não controlamos nada. Na verdade, escolhemos muito pouco. Estamos sempre vulneráveis e submissos às possibilidades de sofrimento e perda. Mas também há sempre a oportunidade de alegres surpresas de amor e ternura, vindas até mesmo de um cachorrinho vira latas, zarolho, manco e que olha pra gente com carinho, mostrando o quanto podemos ter valor quando nos dispomos a simplesmente amar alguém de verdade.