terça-feira, 15 de abril de 2014

Insônia

Acordei no meio da noite. Crise de angústia na menopausa é uma coisa que não desejo pra ninguém. De repente, tudo na vida da gente vai dar errado: as pessoas que amamos vão morrer, a gente vai ficar doente, a velhice chegará solitária e triste. Vêm também à cabeça as cenas que estão acontecendo em muitos lugares naquela mesma hora: pessoas com muita dor, deitadas em uma cama de hospital; idosos nos asilos, maltratados e famintos; crianças morrendo de medo dentro dos orfanatos; presidiários sem ter onde se deitar ou sendo estuprados na prisão. O pior quadro de qualquer história, com vários personagens, isso é o que povoa a mente durante estas horas de puro descontrole hormonal.
Falo pra mim mesma: isso é um evento bioquímico. Amanhã de manhã, não vou pensar ou sentir estas coisas. Não adianta. Os temores noturnos continuam com uma torturante crueldade.
Minha mão, acidentalmente, toca a mão ao meu lado. Ele dorme o sono inocente do homem selvagem.  Capinou, cuidou dos bichos, ajudou a construir uma casa, cozinhou, comeu, e agora dorme pesado, sem nenhum questionamento existencial. Como invejo esse sono!
Ele acorda e me faz carinho. Percebe que estou soluçando de tanto chorar. Põe a mão sobre o meu braço e me pergunta o que houve. Ele sabe que a angústia me atacou outra vez. Tenta conversar um pouco, mas é vencido pelo sono. Mesmo assim, deixa generosamente a mão sobre a minha mão.
Como se fosse mágica, os sentimentos estranhos e aterrorizantes vão esmaecendo no meio da madrugada. O galo canta, mas ainda está tudo escuro lá fora.
Volto a dormir. Chego até a sonhar. Já é hora de acordar e voltar à vida. As olheiras denunciam a noite mal dormida. Se alguém tentar me comprar, vou ter que voltar dinheiro porque não estou valendo nada.

Há apenas o consolo de que, durante o dia, a vida acontece de forma um pouco mais disfarçada. O mal fica despercebido.  Na rotina, quase ninguém se lembra de que vai morrer. Pois vai.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

De Araçá e Graça

O araçá madurou no pé. Foi lá no galinheiro que o pé de araçá nasceu sem ninguém plantar. Nunca tinha provado essa frutinha pequena e cheia de sabor. Adorei. Pegar o araçá de presente, assim, só porque ele nasceu ali, me lembra da Graça de Deus. Não fiz nada pra ganhar aquilo e ganhei.
Fiquei animada e fui passear no pomar. Tirei laranja do pé e comi. Tirei tangerina do pé e comi. Tirei carambola e comi. Até a frutinha de café, vermelhinha e doce, comi também.
Voltei pra dentro de casa com a sensação de que o dia tinha valido a pena.
Quando a gente planta o pé de fruta, o coração fica cheio de sonhos. A gente fica imaginando quanto tempo vai levar pra fruta aparecer no pé. A fruta colhida no pé tem gosto de sonho realizado.
Há momentos em que me sinto a pessoa mais rica do mundo. Ando uns passos pra fora de casa, estendo a mão e a árvore me dá seu fruto bom, o gosto doce da vida que eu escolhi viver.

Dá vontade de ajoelhar ali mesmo e agradecer. Acho que Deus percebe e sabe - dentro de mim, estou de joelhos.

sábado, 12 de abril de 2014

A Casa do Luto

Eclesiastes. Este livro da Bíblia preenche um lugar de verdade para quem experimenta momentos de deserto. O sábio vê tudo e chega sempre à conclusão de que tudo é vaidade. Observando a “casa do luto”, o sábio diz que ali há mais sabedoria do que na casa em que há festa porque, neste lugar, todos ponderam sobre a vida.
Quando minha prima passou oito anos de cama, conheci, pela primeira vez, a sabedoria que há na “casa do luto”. Seu pequeno quarto no apartamento em Niterói era o local onde sempre me sentava ao seu lado, tomando café e conversando sobre as coisas da vida. Às vezes, chorávamos juntas por qualquer coisa. Falávamos sobre as histórias da família, comentávamos sobre coisas que tínhamos visto e assistíamos TV. Gostávamos de ver aqueles programas sobre pessoas pobres que ganhavam passagem pra voltar pra casa e rever a família. Fazíamos isso de propósito, porque gostávamos de competir pra ver quem ia aguentar mais tempo sem chorar. Na maioria das vezes, aquele quarto era palco de muitas risadas ou conversas sérias sobre a razão do sofrimento, os graves abalos da fé e o consolo de Deus.
Minha prima se recuperou e hoje vivemos em cidades distantes. Tenho hoje uma amiga que está de cama por causa de um joelho quebrado. Frequentemente, vou à sua casa e fico no quarto conversando com ela. Foi em uma dessas visitas que me surpreendi com a semelhança entre as situações. O quarto cheio de enfeites, colares pendurados, coisinhas em miniatura, detalhes coloridos como os do quarto de minha prima. Parecia que o cenário tinha sido montado de mesma forma, pela mesma pessoa. De repente, me vi sentada ao lado da cama filosofando, rindo e chorando outra vez.
Conversamos sobre a questão do sofrimento e como ele parece ser aleatório. Alguém questionou o motivo pelo qual uma pessoa que não está fazendo mal a ninguém passa por momentos tão dolorosos, enquanto outros que existem absolutamente para ferrar a vida alheia, às vezes morrem de velhos, em suas casas luxuosas, rodeados pelo fruto confortável do que roubaram do pobre. Sempre parece muito injusto que o sofrimento venha para quem é ético, bom, de boa conduta. Eclesiastes volta à cena.
Ficamos imaginando que se as contas fechassem, isto é, se quem faz errado recebesse a paga instantaneamente e se quem faz certo ficasse imune ao sofrimento, nosso livre arbítrio poderia sofrer uma quebra fatal. Ninguém mais escolheria fazer as coisas por querer mesmo fazê-las e sim porque haveria a recompensa ou o castigo para reforçar o comportamento. Seríamos como cobaias na gaiola acionando o botão correto para receber alimento.
De repente, fiquei imaginando que estamos todos sentados à mesa de carteado. Alguém embaralhou e está distribuindo as cartas aleatoriamente. Recebemos aquela mão de cartas. Não tivemos nenhuma escolha. Algumas vezes, as cartas são excelentes e já começamos o jogo acreditando que vamos bater bem rápido. Outras vezes, recebemos cartas que nos desanimam e nos fazem achar impossível ganhar o jogo. Mas o jogo não acaba quando recebemos as cartas. Ele só está começando. O que fazemos com as cartas, o que compramos da mesa, as associações que somos capazes de formar, isso tudo é que vai nos fazer prosseguir e até ganhar o jogo, mesmo com cartas não muito favoráveis, ou vai nos fazer perder o jogo, mesmo com as grandes possibilidades que tínhamos no início.

Minha prima e minha amiga de joelho quebrado receberam cartas bem ruins. Estive com elas neste lugar onde há sofrimento, ou seja, na “casa do luto”. Sentada ao lado de suas camas, em momentos diferentes de minha vida, joguei com elas o baralho das ideias e sentimentos sobre a existência humana e vi que elas estavam fazendo um jogo muito bom, com grande possibilidade de bater com canastra real.