quarta-feira, 16 de julho de 2014

Juca

Eu sempre disse que queria o bem de todos os animais, inclusive dos cachorros, mas não gostaria de ficar muito perto deles. Não tive um cachorrinho quando eu era criança, a não ser um cachorro de pelúcia que minha mãe deu pra gente “cuidar”. Ele dormia no banheiro, dentro de um caixote e a gente o cobria com um pano velho. Não latia, não fazia nada de errado e nem de certo. A gente embarcou na fantasia por uns dias e depois se tocou de que aquilo não era o cachorro tão sonhado.
Quando meu filho era pequeno, eu também não quis ter um cachorro. Eu já não dava conta de cuidar de nós dois e não queria me sentir responsável por mais uma coisa viva, sem me sentir capaz de cuidar dela também.
Sendo assim, arrumei uma gata pra gente. Ela era independente e ficou muito linda quando cresceu. Os gatos não são tão carentes de atenção quanto os cachorros. Acho que eles exigem menos. Gosto disso, como todo bom egoísta que se preze.
Agora que estamos na roça, vivo rodeada de animais, mas não sou a pessoa responsável por cuidar deles. As galinhas, cavalos, vacas e o que mais tivermos no momento, na sua maioria não têm nem nome. Eu os vejo, admiro, fico cheia de alegria quando estão pastando no meu quintal, mas me eximo da responsabilidade por seu bem-estar com um grande alívio de consciência.
Perdemos várias aves do galinheiro para a onça, por mais de uma vez. Fiquei chateada, mas nada que me tirasse o sono. Pensei na dureza da vida, meditei sobre como é rude a existência dos seres, humanos ou não, vivendo nesse mundo nem sempre planejado pra gerar felicidade.
Para minha surpresa, no entanto, tive de me render aos apelos para que tivéssemos um cão vira latas que nos desse sinal se, por ventura, a onça voltasse a rondar o quintal. Foi assim que pegamos o Juca ainda filhote. Ele tinha outros irmãos e irmãs, mas só ele tinha ficado cego de um olho por causa da unhada de um gato. Ele era zarolho, mas também era o único malhado, do jeito que eu tinha imaginado.
Levamos o Juca pra casa e eu estava um pouco incerta de que seria uma boa dona pra ele. Sempre tive certo complexo de inferioridade por não ter sido a mãe que gostaria de ter sido pro meu filho, e pensava que o Juca ia descobrir meus defeitos como dona de cachorro também.
Eu comecei devagar, dando ordens, colocando limites, servindo a comida, arrumando a caminha e quando eu vi, já estava deitada no chão, abraçando o danadinho. O Juca tinha uma coisa nobre no seu olhar de um olho só. Ele era um cão carinhoso, mas discreto. Ele não disputava atenção com ninguém. Tinha atenção, ele curtia. Não tinha, ele se virava. Ele era filhote, mas parecia mais maduro do que muita gente já crescida.
Bem, foi caso de amor mesmo. Eu tive que me render àquela criatura de Deus, àquele cachorro bom e gentil que veio morar com a gente.
Só que ele ficou doente. Mesmo vacinado, ele começou a tremer as patas traseiras e foi, aos poucos, perdendo o movimento normal. Ele firmava os movimentos nas patas dianteiras e arrastava as outras com muito esforço. Ele ficou bem magro e sentia dores porque tinha o olhar triste e chorava quando estava dormindo.
Fizemos o que podíamos, mas nada parecia adiantar. Ele, por sua vez, não perdeu a nobreza nem por um minuto.
Quando chegava do trabalho, ele vinha correndo, todo desengonçado, pra me encontrar. Ele demonstrava tanto carinho por mim que ficava constrangida por não saber o que fazer para curá-lo. Eu o abraçava bem perto do meu peito e dizia o quanto o amava. Ele levantava a cabecinha para o céu e recebia meu carinho no pescoço, como se sua vida já valesse a pena só por ter aquele momento comigo.
Um dia, quando estávamos só nós dois em casa, chorei muito quando entendi que ele não ia estar vivo por muito tempo. Cheguei bem perto dele e disse: Juca, eu amo muito você e estou muito triste porque acho que você vai morrer. Eu quero pedir pra você procurar o meu pai quando você for pro Céu. Ele vai adorar ter um cachorrinho maravilhoso como você por lá. Se ele estivesse aqui, ia curtir você demais. Então, se você for pra lá, fica com ele também!
Juca morreu. Ele vinha se aguentando, tentando viver da melhor forma que podia, sem um dos olhos e sem o movimento das pernas traseiras. Ele era uma fonte de carinho! Eu me rendi à sua amizade e fico feliz porque tive a chance de viver momentos felizes e tristes com essa criatura especial.
Juca me deu mais motivo pra andar com humildade diante da vida. Não controlamos nada. Na verdade, escolhemos muito pouco. Estamos sempre vulneráveis e submissos às possibilidades de sofrimento e perda. Mas também há sempre a oportunidade de alegres surpresas de amor e ternura, vindas até mesmo de um cachorrinho vira latas, zarolho, manco e que olha pra gente com carinho, mostrando o quanto podemos ter valor quando nos dispomos a simplesmente amar alguém de verdade.




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