Eu sempre disse
que queria o bem de todos os animais, inclusive dos cachorros, mas não gostaria
de ficar muito perto deles. Não tive um cachorrinho quando eu era criança, a
não ser um cachorro de pelúcia que minha mãe deu pra gente “cuidar”. Ele dormia
no banheiro, dentro de um caixote e a gente o cobria com um pano velho. Não
latia, não fazia nada de errado e nem de certo. A gente embarcou na fantasia
por uns dias e depois se tocou de que aquilo não era o cachorro tão sonhado.
Quando meu filho
era pequeno, eu também não quis ter um cachorro. Eu já não dava conta de cuidar
de nós dois e não queria me sentir responsável por mais uma coisa viva, sem me
sentir capaz de cuidar dela também.
Sendo assim,
arrumei uma gata pra gente. Ela era independente e ficou muito linda quando
cresceu. Os gatos não são tão carentes de atenção quanto os cachorros. Acho que
eles exigem menos. Gosto disso, como todo bom egoísta que se preze.
Agora que
estamos na roça, vivo rodeada de animais, mas não sou a pessoa responsável por
cuidar deles. As galinhas, cavalos, vacas e o que mais tivermos no momento, na
sua maioria não têm nem nome. Eu os vejo, admiro, fico cheia de alegria quando
estão pastando no meu quintal, mas me eximo da responsabilidade por seu
bem-estar com um grande alívio de consciência.
Perdemos várias
aves do galinheiro para a onça, por mais de uma vez. Fiquei chateada, mas nada
que me tirasse o sono. Pensei na dureza da vida, meditei sobre como é rude a
existência dos seres, humanos ou não, vivendo nesse mundo nem sempre planejado
pra gerar felicidade.
Para minha
surpresa, no entanto, tive de me render aos apelos para que tivéssemos um cão
vira latas que nos desse sinal se, por ventura, a onça voltasse a rondar o
quintal. Foi assim que pegamos o Juca ainda filhote. Ele tinha outros irmãos e
irmãs, mas só ele tinha ficado cego de um olho por causa da unhada de um gato.
Ele era zarolho, mas também era o único malhado, do jeito que eu tinha imaginado.
Levamos o Juca
pra casa e eu estava um pouco incerta de que seria uma boa dona pra ele. Sempre
tive certo complexo de inferioridade por não ter sido a mãe que gostaria de ter
sido pro meu filho, e pensava que o Juca ia descobrir meus defeitos como dona
de cachorro também.
Eu comecei
devagar, dando ordens, colocando limites, servindo a comida, arrumando a
caminha e quando eu vi, já estava deitada no chão, abraçando o danadinho. O
Juca tinha uma coisa nobre no seu olhar de um olho só. Ele era um cão carinhoso,
mas discreto. Ele não disputava atenção com ninguém. Tinha atenção, ele curtia.
Não tinha, ele se virava. Ele era filhote, mas parecia mais maduro do que muita
gente já crescida.
Bem, foi caso de
amor mesmo. Eu tive que me render àquela criatura de Deus, àquele cachorro bom
e gentil que veio morar com a gente.
Só que ele ficou
doente. Mesmo vacinado, ele começou a tremer as patas traseiras e foi, aos
poucos, perdendo o movimento normal. Ele firmava os movimentos nas patas
dianteiras e arrastava as outras com muito esforço. Ele ficou bem magro e sentia
dores porque tinha o olhar triste e chorava quando estava dormindo.
Fizemos o que
podíamos, mas nada parecia adiantar. Ele, por sua vez, não perdeu a nobreza nem
por um minuto.
Quando chegava
do trabalho, ele vinha correndo, todo desengonçado, pra me encontrar. Ele
demonstrava tanto carinho por mim que ficava constrangida por não saber o que
fazer para curá-lo. Eu o abraçava bem perto do meu peito e dizia o quanto o amava.
Ele levantava a cabecinha para o céu e recebia meu carinho no pescoço, como se
sua vida já valesse a pena só por ter aquele momento comigo.
Um dia, quando
estávamos só nós dois em casa, chorei muito quando entendi que ele não ia estar
vivo por muito tempo. Cheguei bem perto dele e disse: Juca, eu amo muito você e
estou muito triste porque acho que você vai morrer. Eu quero pedir pra você
procurar o meu pai quando você for pro Céu. Ele vai adorar ter um cachorrinho
maravilhoso como você por lá. Se ele estivesse aqui, ia curtir você demais.
Então, se você for pra lá, fica com ele também!
Juca morreu. Ele
vinha se aguentando, tentando viver da melhor forma que podia, sem um dos olhos
e sem o movimento das pernas traseiras. Ele era uma fonte de carinho! Eu me
rendi à sua amizade e fico feliz porque tive a chance de viver momentos felizes
e tristes com essa criatura especial.
Juca me deu mais
motivo pra andar com humildade diante da vida. Não controlamos nada. Na
verdade, escolhemos muito pouco. Estamos sempre vulneráveis e submissos às
possibilidades de sofrimento e perda. Mas também há sempre a oportunidade de alegres
surpresas de amor e ternura, vindas até mesmo de um cachorrinho vira latas,
zarolho, manco e que olha pra gente com carinho, mostrando o quanto podemos ter
valor quando nos dispomos a simplesmente amar alguém de verdade.
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