quinta-feira, 20 de março de 2014

A Perua do Gávea

Todos os dias, no ônibus Gávea-tarifa, o mesmo clima frio de ar refrigerado, perfume e condicionador de cabelo enchendo o ar de cheiro de festa. A rádio tocando algum flashback dos anos 80 na JB. Tudo costumeiramente previsível, até que ela entrasse no ônibus.
O corpo magrinho em roupas provocantes de adolescente, contrastando com o rosto que denunciava que a juventude já havia ficado pra trás. O cabelo comprido, louro cenoura na pele morena, dava um ar meio vulgar à figura que, ao abrir a boca, confirmava toda a desconfiança.
Chegava falando alto com o motorista, a quem chamava sempre pelo primeiro nome. Cheia de intimidade, reclamava do horário do ônibus, enquanto se ajeitava toda faceira em uma das poltronas da frente. Aí, viajava o tempo todo conversando com o pobre moço, um profissional bem treinado que apenas confirmava qualquer bobagem com a cabeça, enquanto passava as marchas.
Sua voz era irritantemente rouca e estridente. Talvez fosse esse o principal motivo da má vontade dos outros passageiros em relação à sua presença no ônibus nosso de todo dia.
Sorte de todos! Por algum tempo, ela parou de viajar naquele horário. Agora, na poltrona da frente, apenas uma senhora muito elegante, séria e com o olhar distante ocupava silenciosamente o espaço.
Até que um dia, depois de longa trégua, o cabelo cenoura apontou na escada. A rotineira brincadeirinha com o motorista e enfim, juntas nas poltronas da frente, ficaram a dama elegante e a perua do Gávea. O visível contraste criava no ar uma expectativa comum: sobre o que vão conversar? Vão conversar?
Ela, como era de se esperar, puxa um assunto qualquer e a mulher embarca devagar, até que, aos poucos, a conversa toma um destino inesperado. Não se sabe por que razão, a dama elegante e triste começa a contar sua história. Havia perdido a filha em condições trágicas e provavelmente violentas. Sua voz é grave, doída e trêmula como a lateral de seus lábios, tentando conter o vulcão de emoções, de rancor, de intenso sofrimento.
Mas logo pra quem ela vai contar uma coisa dessas!? A tensão paira no ar como se todos em suas poltronas estivessem prontos a ceder seus lugares para que a mulher pudesse ficar longe de qualquer comentário infeliz ou estridente por parte da perua.
A mulher continua falando de sua dor em tom de impotência. A perua ouve tudo atentamente e, às vezes, dá pra gente ouvir sua voz rouca, agora em tom bem suave, mencionando coisas como vida depois da morte, lugares bonitos onde as pessoas descansam em paz em algum ponto do universo, talvez o Céu.
O ônibus passa pela ponte, a rodoviária Novo Rio, o túnel Santa Bárbara até chegar a Laranjeiras, onde a mulher se despede, talvez um pouco mais leve e menos sofrida, descendo no ponto do Palácio do Governo.
A perua, com a mesma voz suave, aperta suas mãos de forma calorosa e depois acena pela janela até que o ônibus começa a deixar Laranjeiras pra trás.
O barulho dos carros e o apito do guarda contrastam com o silêncio causado pela perplexidade dos passageiros.
Um minuto de quietude e ela se recosta na poltrona. Olha outra vez para fora com os olhos mirando lá longe. Sobe a mão até o rosto e enxuga algumas lágrimas. Chora com generosa solidariedade a dor daquela desconhecida.
O ônibus continua a viagem, como fazem tantos outros coletivos urbanos, todos os dias, indo e vindo pra levar as pessoas que trabalham, estudam, sobrevivem rindo ou chorando. Ônibus que estão lotados de seres humanos maravilhosamente surpreendentes!


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