sábado, 23 de abril de 2016

BOIS BRANCOS E GALOS

Eu sei que não é nada inteligente e até meio embaraçoso, mas como não tinha energia hoje e eu não pude ligar a TV, fui ler um pouco na varanda. Eu devia morar num lugar onde, além de não ter telefone ou internet, não pudesse assistir TV. Acho que minha vida ficaria muito melhor assim.  Alguém pode até argumentar que eu tenho a escolha de não ligar a TV e ir fazer outra coisa qualquer, mas o apelo de passar horas em frente a uma caixinha iluminada sem ter que pensar em nada é muito atraente para mim. É como uma garrafa de pinga para quem é alcoólatra e quer esquecer um amor. A TV me ajuda a esquecer de pensar e isso chega a ser um descanso, um alívio.

Sem TV, sento na varanda, leio um pouco e depois fico olhando em volta. Aí vem a vontade de responder ao apelo da paisagem e escrever.

Os bois brancos em cima do monte ficam ainda mais brancos com o sol da tarde sobre seus lombos. Eles estão lá, existindo mansamente, sem saber, mas esperando a hora de serem abatidos. Não sei se eles pensam alguma coisa enquanto mastigam o capim, se ficam afeiçoados aos companheiros de manada, se apreciam a paisagem, o céu azul, o barulho da corredeira. Eu os vejo daqui da varanda e eles me transmitem paz. Vão morrer um dia, como eu e todos os que amo. Vão morrer como aqueles que eu amava e que há tão pouco tempo me deixaram.

A morte anda me rondando. Ela às vezes anuncia e às vezes pega de surpresa. Levou embora meu pai, minha mãe, meus parentes e amigos chegados e ainda fica fazendo ameaças durante as horas de insônia, dizendo que eu também mereço ir logo porque não estou dando conta de viver como devia.

O galo não para de cantar. São duas da tarde, mas ele não tem hora. Canta alto o tempo todo. Hoje, alguém disse que desse jeito, ele vai acabar na panela. Mas eu o defendi. Argumentei que seu único pecado era cantar demais. Não acho que isso seja motivo pra gente comer o galo com macarrão. Deixa pra matar os valentões que brigam com os pintinhos e as galinhas sem deixá-los chegar no milho. Esses eu condeno à morte sem dó.

Quem me condenou à morte não o fez porque eu brigo demais ou porque canto na hora errada. Quem me condenou à morte o fez quando eu nasci, um bebê bonitinho e indefeso, dando um grito ao encher os pulmões pela primeira vez. Antes de me condenarem a morrer, deixaram que eu visse a morte daqueles que amo. Condenaram-me a dizer adeus.  Condenaram-me a passar dias calada, sem ter o que dizer de bom. Tem dias em que a gente nem consegue conversar com Deus, só clamar por socorro e nada mais.



Estamos todos condenados – eu, os bois e os galos. Por isso preciso deixar de pensar, assim como fazem os bois branquinhos em cima do morro verde.  A luz do sol sobre eles me dá esperança. Seres condenados como eu, brilhando em contraste com o céu azul.

8 comentários:

  1. Eu não sei se o que eu tenho é assim tb. Mas é bem parecido.

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  2. Lindo texto, Priscila. Não há como não pensar na nossa finitude.

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  3. É como a dança das cadeiras que brincávamos nos retiros, uma hora falta uma cadeira pra nós, e aí é hora de sair do jogo.

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  4. É como a dança das cadeiras que brincávamos nos retiros, uma hora falta uma cadeira pra nós, e aí é hora de sair do jogo.

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  5. Dizem que do lado de lá há muita dor e sofrimento...
    Dizem que a vitória de cada dia precisa ser disputada com unhas e dentes, mas eu nem sei o que isso significa...
    Sô sei que um dia, mais cedo ou mais tarde, teremos que ir para lá.
    Queria ficar aqui para sempre, adoro viver, mas não ouso questionar a vontade do Pai.
    Se pudesse escolher, ficaria aqui, no plano etéreo, no mundo espiritual...

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  6. A dor melhora um pouco quando se consegue criar. Seja escrevendo, compondo uma música, pintando... e vc o faz mto bem!!! Beijo

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  7. A dor melhora um pouco quando se consegue criar. Seja escrevendo, compondo uma música, pintando... e vc o faz mto bem!!! Beijo

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  8. Texto lindo! Melancólico e verdadeiro. Verdade que estamos todos condenados. Mas melhor então aprendermos com os seres irracionais. Vamos vivendo e saboreando a natureza sem pensarmos no dia final. Um viva à vida!

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